A NATUREZA E AS ORIGENS DE DUKKHA
John D. Teasdale
Michael Chaskalson (Kulananda)
Resumo. Este, o primeiro de dois artigos interligados, apresenta a análise do Buda quanto à natureza e as origens de dukkha (sofrimento) enquanto uma base para a compreensão das maneiras pelas quais mindfulness consegue transformar o sofrimento. A Primeira e a Segunda Nobre Verdade do Buda são apresentadas de modo que se provou útil aos professores de aplicações com base em mindfulness. Estas Verdades oferecem uma estrutura de compreensão que pode guiar a aplicação de mindfulness em situações de estresse e distúrbios emocionais, mantendo a ênfase na continuidade e inevitabilidade da experiência de dukkha em clientes, professores e todos aqueles que buscam um novo modo de ser. O envolvimento crucial da visão de si próprio e da identificação com a experiência são enfatizados.
Este é o primeiro de dois artigos interligados que discutem mindfulness e a transformação do sofrimento. Este primeiro artigo foca na apresentação da análise do Buda quanto à natureza e as origens do sofrimento de maneira que se provou útil àqueles que ensinam aplicações baseadas em mindfulness (como a MBSR e a MBCT). Ele é baseado em uma palestra oferecida por John Teasdale sobre a Primeira e Segunda Nobre Verdade do Buda em um retiro voltado especificamente à instrutores de MBSR/MBCT no Spirit Rock Meditation Center em Dezembro de 2009.
As Quatro Nobre Verdades
Quando nós observamos o primeiro principal ensinamento que o Buda concedeu depois do despertar, descobrimos que o que ele ofereceu, aquilo que ele julgou mais importante dizer aos outros a princípio, foi, de fato, uma estrutura conceitual, uma estrutura de compreensão. Este foi o ensinamento das Quatro Nobres Verdades (Samyutta Nikaya 56:11)
Nestas verdades, o Buda sintetizou em quatro postulados chave a compreensão que permite aos outros despertarem, encontrarem maior liberdade e paz e felicidade definitivas, conforme ele mesmo fez.
Estas verdades foram apresentadas muito mais como guias de conduta e ação a serem explorados, testados e examinados em nossa própria experiência do que como artigos de fé cega prontos para serem engolidos (Batchelor 1997). Por esta razão, muitos preferem chama-las de as Quatro Verdades Enobrecedoras – verdades que enobrecem aqueles que agem de acordo com elas.
O Buda trilhou uma jornada existencial e espiritual. Conforme se conta, ele estava profundamente insatisfeito com a vida de prazeres que vinha conduzindo e partiu em busca de um modo de vida mais satisfatório. E, enquanto um gesto de compaixão, ele ofereceu as Quatro Nobres Verdades como um guia para outros que também sentiam que há mais nesta vida do que o que se apresenta aos olhos.
Mas e quanto aos clientes e pacientes que procuram nossas aulas de Mindfulness-based Stress Reduction [Redução do Estresse com Base em Mindfulness] (MBST) e Mindfulness-based Cognitive Therapy [Terapia Cognitiva com Base em Mindfulness] (MBCT)? Em sua maioria, eles buscam por alívio do estresse ou de suas depressões crônicas e não pela resolução de alguma enfermidade existencial. Como as Quatro Nobre Verdades podem ser relevantes às suas questões?
Parte da genialidade do Buda, e a razão pela qual seus ensinamentos são tão relevantes aos nossos pacientes e clientes, é que ele enxergou que os padrões mentais que mantém as pessoas presas em sofrimento emocional são, essencialmente, os mesmos padrões mentais que separam todos nós do florescimento de um modo de vida mais satisfatório. Estejamos nós trabalhando para nos liberar de nossas perturbações emocionais, ou para realizar um novo jeito de viver, estaremos lidando fundamentalmente com os mesmos padrões mentais.
O conceito principal aqui é o de dukkha, uma palavra em Páli que não possui uma tradução adequada para o português [ou inglês]. (Páli é uma das antigas línguas Indianas nas quais os ensinamentos do Buda foram inicialmente registrados) Dukkha é frequentemente traduzida como sofrimento, mas esta tradução pode gerar muitos enganos. Por esta razão, muitas pessoas preferem não traduzir dukkha e preservar o termo em Páli, não porque elas estão enamoradas pelos jargões Budistas, mas para evitar as limitações da tradução.
Dukkha é o foco central das Quatro Nobres Verdades. Este primeiro artigo vai focar primariamente nas primeiras duas verdades, que abordam a natureza e origens de dukkha. O segundo artigo trabalha a terceira e a quarta verdade, que focam na cessação de dukkha e como é possível realizar esta cessação na prática.
A Primeira Nobre Verdade
A Primeira Nobre Verdade identifica o problema. Sumedho (1992) expressa esta verdade de modo muito simples: “Existe dukkha”.
Dukkha contempla um vasto número de experiências – da angústia intensa que experimentamos ao sofrer dores físicas e emocionais até a sensação sutil de fadiga e inquietude existencial perante o mundo em que vivemos – o tipo de coisa que levou o Buda a abandonar sua vida de prazeres e procurar uma outra forma de viver.
Todas as formas de dukkha contêm uma sensação de insatisfatoriedade, de incompletude, uma sensação de que, de alguma maneira, não estamos vivendo a vida em seu máximo potencial. Desde que nós não detenhamos uma sensação de completa paz, contentamento, tranquilidade e integridade, então é certo que dukkha está presente em algum nível.
A exposição de Sumedho quanto à Primeira Verdade – Existe dukkha – nos recorda que todos os seres humanos não despertos partilham desta experiência.
Com frequência pode ser que nós nos sintamos sozinhos entre a multidão de seres, incapazes de resolver nossas vidas e descobrir o segredo da felicidade duradoura, conquanto que todos os outros parecem ter desvendado este enigma e estar bem resolvidos. Assim, pode ser que nós acreditemos que este problema é uma falha pessoal da nossa parte. E esta identificação, obviamente, só torna a sensação de insatisfatoriedade mais intensa.
O Buda ceifou esta pessoalização de dukkha quando ele propôs de maneira um tanto simples “Existe dukkha” – simplesmente esta é a situação para todos nós. Não precisamos levar isto para o lado pessoal – não sou “eu” ou é “minha” culpa; é esta a condição humana normal do estado não desperto.
De fato, como veremos adiante, a inevitabilidade de dukkha está imbricada na maneira como nossas mentes são estruturadas em nosso atual estágio de desenvolvimento de consciência. Uma vez que realizemos isto, a situação pode se tornar curiosamente reconfortante – desde que, é claro, saibamos que há a possibilidade de se libertar de dukkha.
Também não precisamos nos sentir sozinhos. Estamos todos dividindo este mesmo barco, não importando quem nós formos – professores, pacientes, clientes ou mesmo as pessoas que cruzamos na rua. Todos nós partilhamos destas duas coisas em comum – dukkha, e o desejo simples de ser feliz. Esta compreensão pode nos ajudar a experienciar uma sensação de maior conexão e compaixão perante todos os seres humanos.
O Buda habilmente identificou três domínios ou bases para dukkha (Samyutta Nikaya 38:14).
O primeiro domínio de dukkha é a insatisfatoriedade relacionada às situações de sofrimento evidente e ordinário: dores físicas, dores emocionais, experiências que julgamos desagradáveis, não conseguir aquilo que desejamos, ou nos separar daqueles que amamos.
Estas são todas situações nas quais experienciamos claramente sensações desprazerosas. O Buda percebeu que sensações físicas ou emocionais desagradáveis ou desconfortáveis são todas inerentes à vida. Em si mesmas, elas não são o problema. De fato, dukkha é o sofrimento que nós adicionamos às experiências desagradáveis a partir do modo como nos relacionamos com elas. Geralmente é este sofrimento, e não aquele das sensações desagradáveis em si mesmas, que é a principal fonte de nossa infelicidade.
Conforme o próprio Buda:
Quando um ser destreinado é tocado por uma sensação (corporal) dolorosa, ele se preocupa, se angustia, bate no peito, chora e se perturba. Ele, portanto, experiencia dois tipos de sensações – uma corporal e outra mental. É como uma pessoa que é atingida por uma flecha e, em seguida, já é flechada novamente. Neste caso, a pessoa irá experienciar as sensações causadas por duas flechadas. No entanto, no caso de um nobre discípulo, um ser treinado, quando é tocado por uma sensação dolorosa, ele não se preocupa, se angustia, bate no peito, chora e se perturba. Assim, ele experiencia apenas um tipo de sensação – a corporal, mas não a mental. É como uma pessoa que é atingida por uma flecha, mas que escapa da segunda flechada. Neste caso, a pessoa irá experienciar a sensação causada por uma única flechada. (Sallatha Sutta)
A principal mensagem deste ensinamento é a seguinte: ainda que as sensações desagradáveis e desconfortáveis sejam inevitáveis, dukkha, no sentido de sofrimento, é opcional. E é opcional porque somos nós mesmos quem atiramos a segunda flecha!
Então, por exemplo, em casos de depressão, a primeira flecha é uma sensação simples de tristeza que é transformada em um estado mais intenso e persistente de depressão quando adicionamos a segunda flecha do pensamento ruminante.
Seres despertos ainda atravessam experiências e sensações desagradáveis – a primeira flecha – mas, por terem aprendido a se relacionar mais habilmente com elas, eles não experienciam sofrimento – a segunda flecha.
Aprender a não atirar esta segunda flecha, a como se relacionar mais habilmente com as sensações desagradáveis de modo a não criar dukkha, é o principal foco de nossa prática e o que nós ensinamos nas aulas de MBSR e MBCT.
O segundo domínio de dukkha é a insatisfatoriedade diante da Mudança.
Nós adoraríamos que nossas experiências de felicidade e prazer continuassem indefinidamente, mas elas não vão. Nós adoraríamos que nossas roupas recém compradas, carro do ano, se preservassem exatamente do mesmo jeito que no dia que nós compramos, mas estas coisas vão envelhecer, se desatualizar, estragar e desengonçar. Nós adoraríamos que nossas relações amorosas continuassem tão afetuosas e calorosas como no dia em que nos apaixonamos, mas inevitavelmente estas relações irão atravessar altos e baixos e, eventualmente, os seres que amamos irão morrer. Todas estas mudanças são uma outra base para dukkha.
A mudança em si mesma não é necessariamente o problema. Ela se torna um problema, uma base para o sofrimento, quando nós não queremos que ela aconteça, conforme iremos discutir na Segunda Nobre Verdade.
O terceiro domínio de dukkha é a insatisfatoriedade diante da Condicionalidade.
O nosso mundo e nossa experiência são essencialmente instáveis e condicionais. O que isto quer dizer é que aquilo que acontece em nossos mundos internos e externos depende de uma gama enormemente complexa de condições mutuamente interativas e cambiantes, muitas das quais nós sequer temos consciência sobre, e sobre as quais detemos pouco ou nenhum controle. Disto segue-se que nossa experiência é basicamente instável; uma vez que nós nunca seremos capazes de conhecer ou controlar todas as condições que determinam se tal coisa irá ou não acontecer, não importa o quanto nós tentemos, simplesmente não podemos confiar 100% que as coisas vão acontecer de um determinado jeito.
Por exemplo, em um retiro pode ser que nós experimentemos uma meditação brilhante, sublime e bem-aventurada em nossa primeira sessão do dia. Nós nos sentamos, então, para a segunda sessão e nos posicionamos exatamente da mesma maneira que na primeira sessão. Contudo, desta vez, nossa mente está totalmente embaralhada e dispersa. E a razão para tanto é que, por uma ou outra razão, um conjunto de condições diferente está operando, e entre elas provavelmente está presente a sutil, talvez mesmo inconsciente, expectativa ou desejo de que esta sessão seja tão boa quanto a anterior.
Novamente, a instabilidade e condicionalidade da experiência não são o problema; elas se tornam uma fonte de sofrimento porque nossas mentes simplesmente não querem reconhecer as coisas da forma que são.
Nossas mentes estão ocupadas com conseguir aquilo que nós desejamos, o que implica em estabelecer alguma sensação de controle e previsibilidade perante nosso mundo externo e interno. Para tanto, parte de nossa mente reduz a enorme complexidade do mundo condicional a um nível acessível à observação – não em termos de padrões complexos e mutáveis de condições dinâmicas, mas de “coisas” independentes e existentes em si mesmas, dotadas de identidades com características e propriedades fixas, estáveis e perenes.
Por exemplo, ao invés de enxergar a experiência de uma sessão de meditação em termos dos efeitos das muitas condições interagindo entre si, nossas mentes se inclinam a perceber em termos de categorias simples como “bom meditante” versus “mal meditante”.
Nossas mentes trabalham assim porque, em algumas áreas, de fato esta abordagem oferece uma sensação maior de segurança e maneabilidade. Mas a realidade da instabilidade e condicionalidade básicas da existência dos fenômenos já prevê que há sérios limites para as nossas capacidades de previsão e controle seja do mundo ou de nossa própria experiência.
Esta incompatibilidade fundamental entre a maneira que nossas mentes enxergam as coisas e a verdadeira natureza da realidade é um aspecto daquilo que no Budismo chamamos de “ignorância”, e esta ignorância é uma fonte profunda, substancial e onipresente de dukkha. É neste sentido que dissemos que dukkha é inevitável, dada a maneira com a qual nossas mentes estão presentemente estruturadas.
Um dos aspectos mais prejudiciais da ignorância é a tendência que dela advém de nos identificarmos com os aspectos mutáveis e transitórios de nossa experiência – nosso humor, sentimentos, pensamentos – como se eles fossem partes de alguma espécie de identidade independente e inerentemente existente – um self. Disto estes aspectos passageiros se tornam “meus” pensamentos, “minhas” emoções etc.; um reflexo de quem eu sou.
Iremos observar mais intimamente a maneira pela qual esta identificação alimenta dukkha quando abordarmos a Segunda Nobre Verdade.
Conforme mencionamos, as Quatro Nobres Verdades pretendem ser linhas de conduta práticas para a liberação e o despertar. Por este motivo, cada uma destas Verdades é acompanhada de uma instrução específica para a ação. Para a Primeira Nobre Verdade, a instrução é: “dukkha deve ser integralmente compreendida”. Aqui, no original em Páli, a palavra traduzida como “compreensão” (parinneyam) tem um sentido de “conhecimento integral e absoluto – do início ao fim”; não um mero conhecimento intelectual ou conceitual sobre o sofrimento, mas um reconhecimento a partir da intimidade direta e penetrante com a experiência.
Nós só poderemos fazer isso se estivermos preparados para nos abrir ao sofrimento e a insatisfatoriedade que experimentamos – deter a coragem de se aproximar de dukkha, permitir que ela seja tal qual é conforme investigamos e entendemos sua natureza e a forma pela qual nós a criamos e sustentamos. Este aspecto de se mover na direção de experiências difíceis é, obviamente, central à MBSR e outras abordagens relacionadas. É daqui, da Primeira Nobre Verdade, que isto surgiu originalmente.
Pois então, este movimento na direção do sofrimento com a intenção de compreende-lo plenamente é, por óbvio, muito diferente de nossas reações habituais, que são movidas pelo querer se afastar do sofrimento o mais rápido possível. Portanto, se pretendemos seguir esta recomendação da Primeira Nobre Verdade, precisamos determinar e estabelecer uma intenção de nos aproximar do sofrimento com uma consciência aberta, corajosa e interessada, de novo e de novo.
A Primeira Nobre Verdade sugere que o sofrimento, se tomado de modo hábil, na verdade é o caminho a ser trilhado na jornada em busca de liberdade e felicidade e não o obstáculo. A partir da investigação corajosa de nossas experiências de sofrimento e insatisfatoriedade, surgem as condições de descobrir as origens de dukkha, que são o foco da Segunda Nobre Verdade.
A Segunda Nobre Verdade
O grande insight oferecido pela Segunda Nobre Verdade é o entendimento de que a causa de dukkha é tanha – uma palavra Páli geralmente traduzida como anseio ou apego pelo desejo. Mas uma tradução como “desejo” gera uma série de dificuldades. Então, uma vez mais, assim como em dukkha, pode ser interessante não traduzir tanha e manter o uso do Páli – não em nossas aulas seculares de mindfulness, mas como parte da estrutura de nosso próprio entendimento.
A essência fundamental de tanha é ilustrada como se fosse uma sede insaciável – uma sede que nunca será satisfeita, mas sobre a qual, tragicamente, nos sentimentos impelidos a continuar tentando saciar. É esta combinação fatal de insaciabilidade do desejo e indisposição de renunciar aos nossos objetos de desejo que cria sofrimento.
O apego ao desejo tem uma qualidade compulsiva – uma sensação sutil (ou não tão sutil) de que nós precisamos que as coisas sejam de um jeito ou de outro. Esta compulsão se reflete em nossa experiência interna e linguagem, dominadas por um vocabulário léxico e emocional de necessidade, dever, obrigação, imprescindibilidade e se (isso ou aquilo).
A mensagem principal, então, da Segunda Nobre Verdade é esta: a experiência em si mesma não é um problema – o problema está na nossa relação com a experiência – nossa necessidade de experienciar isto ou aquilo deste ou daquele jeito.
Enquanto uma mera ideia, a mensagem da Segunda Nobre Verdade não é muito difícil de apreender e relembrar. Mas para que esta verdade seja efetivamente liberadora, nós precisamos incorporar sua compreensão a nível experiencial exatamente no momento em que encontrarmos sensações desagradáveis. E isto pode ser um tanto difícil. Quando somos confrontados com a realidade de uma dor intensa nos joelhos, cansaço extremo ou tristeza profunda, é muito fácil enxergar o problema exatamente na experiência em si. Daí então nós colocamos toda a nossa energia na tentativa de afastar estas sensações, ao invés de explorar a nossa relação com elas. E, da perspectiva da Segunda Nobre Verdade, é precisamente esta reação de precisar se afastar do desagradável que cria o sofrimento.
O desafio, então, é incorporar a nível experiencial nas lentes com as quais enxergamos e nos relacionamos com a nossa experiência de mundo a compreensão que irá nos permitir conviver com as sensações desagradáveis sem que sejamos enrijecidos pelo tensionamento e pela sofreguidão. E o entendimento conceitual, ainda que não detenha em si mesmo o potencial de liberação, ocupa aqui um papel importante. Se não fosse assim, por que o Buda teria tido o trabalho de ensinar as Quatro Nobres Verdades do jeito que ensinou?
Há algum tempo, um de nós (JDT) teve uma experiência que ilustrou muito claramente a relação entre o entendimento intelectual e a incorporação experiencial da Segunda Nobre Verdade enquanto um instrumento de liberação:
Eu estava no meio da preparação de uma fala sobre a Segunda Nobre Verdade e vinha pensando muito sobre o assunto, até o ponto que, nas primeiras horas da manhã, me vi deitado na cama enquanto sobrevoavam pensamentos em minha mente a respeito da causa de dukkha ser a nossa relação com as dificuldades, e não as dificuldades em si mesmas. E aí me dei conta, incomodado, que eu havia perdido algumas horas de sono. E, adivinhem, minha mente logo reagiu, pensando “a não! Eu não quero ficar acordado por tantas horas, eu preciso dormir logo de uma vez!” Pois então, ainda que eu estivesse pensando e focado justamente na ideia de que o problema não é a experiência em si mesma, mas sim a relação com a experiência, minha reação imediata foi tentar resolver esta questão me livrando desta insônia indesejada, ao invés de olhar para como eu me relacionava com ela. Mas o crucial foi que, como a ideia da Segunda Nobre Verdade orbitava em minha mente naquele instante, logo surgiu o pensamento “ei, isto é aversão! O problema aqui é mais a minha sensação de que preciso dormir do que o fato de eu estar acordado”. E, então, guiado pelas minhas memórias acerca deste ensinamento, eu olhei com mais atenção para a minha experiência e pude perceber de forma muito clara que a minha irritação com estar acordado, e a qualidade um tanto obstinada da minha necessidade de voltar a dormir, é que eram a fonte do meu desconforto e, ironicamente, o principal fator que me tirava o sono. E a partir desse claro vislumbre fluiu muito naturalmente um relaxamento daquela irritação e da necessidade de resolver aquele problema. Eu conscientemente me amiguei daqueles momentos de insônia e dentro de um ou dois minutos já tinha voltado a dormir. (Teasdale)
Como essa história indica, a compreensão conceitual das origens de dukkha não é, em si mesma, liberadora. Mas se esta compreensão conceitual se mantém fresca e viva na mente de modo que esteja disponível para adequar e modelar as lentes com as quais nós de fato enxergamos e nos relacionamos com as experiências difíceis, então esta compreensão pode se tornar um ingrediente vital na receita da liberação. Um dos motivos pelos quais estes ensinamentos repetem as mesmas mensagens fundamentais de novo e de novo é para manter a compreensão conceitual viva desta maneira. Eventualmente, depois de um número suficiente de experiências nas quais tomamos a compreensão conceitual como apoio para guiar nossas lentes da experiência, ficará estabelecida uma nova perspectiva da experiência que pode continuar o trabalho pela liberação sozinha.
O principal problema de tanha é que nós simplesmente não conseguimos soltar nosso desejo e necessidade de que as coisas se desenrolarem de tal e tal jeito, mesmo que seja exatamente isso que cria o nosso sofrimento.
Por que é tão difícil abandonar o apego ao desejo? Para responder esta pergunta, nos atentemos mais detidamente aos tipos de desejo aos quais nós nos apegamos e pelos quais, por consequência, sofremos.
O Buda identificou três tipos – desejo por prazeres sensoriais, desejo de ser e desejo de não ser (Digha Nikaya 22).
Nós nos apegamos ao desejo por experiências agradáveis com os sentidos – sabores, odores, texturas, cenas, sons, pensamentos e sensações (na psicologia Budista a mente é compreendida como um sexto sentido).
Em certo sentido, este desejo está enraizado em nossa constituição biológica e garantiu nossa sobrevivência evolutiva. Mas esta história não acaba aí – em seres não humanos, estes desejos são saciáveis – a fome, a sede e o apetite sexual podem ser satisfeitos.
Mas a nossa constituição biológica de fato garante que os prazeres sensoriais nunca sejam duradouros – por exemplo, a primeira mordida de um bolo de chocolate pode nos trazer imenso prazer, conquanto que a segunda e terceira mordidas trazem um pouco menos, a segunda e terceira fatia ainda menos, e se continuarmos comendo o bolo até o fim, podemos nos dar conta que aquilo que era inicialmente uma fonte de prazer pode rapidamente se tornar uma fonte de desconforto e repulsa. E, se repetíssemos esta experiência diariamente, iríamos descobrir que até a primeira mordida progressivamente perderia seu apelo. Por este motivo, o prazer sensorial simplesmente nunca será capaz de oferecer a felicidade duradoura que almejamos – esta sede é insaciável pelos seus próprios meios.
É o envolvimento sutil de uma visão de si que torna tão difícil abandonar certas coisas. A centralidade deste self nos apegos e na avidez se torna ainda mais clara quando nos voltamos para os dois tipos de tanha – o anseio de ser e o anseio de não ser.
O apego ao desejo de ser ou de existir tem dois aspectos. O mais básico é o apego ao desejo de existir no sentido de sobreviver, de estar vivo, de continuar a existir enquanto este fenômeno que chamamos de self.
Existe ainda o apego ao desejo de ser ou nos tornar determinados tipos de self – seja em um nível mais amplo, como um self que é amado, um self que é respeitado, um self que é gentil, um self que é competente e faz as coisas bem, um self que é um bom meditante, um self que é bem-sucedido, ou em um nível mais específico, como um self que terá uma boa sessão de meditação no dia de hoje, um self que completou sua lista de afazeres, um self que vai oferecer uma palestra que será bem recebida.
Este é o reino da consecução, realização e ambição.
O terceiro domínio do anseio é o apego ao desejo de não ser, ou de não existir ou atravessar determinadas experiências. Ao contrário das outras duas formas de tanha, este é um anseio negativo: uma necessidade de ter paz ou alívio diante do sofrimento por meios de uma não existência.
Assim como no apego positivo que é o anseio de ser, o anseio negativo por não ser tem uma forma ampla e uma específica.
A nível mais amplo, existe o apego ao desejo de não existir, de desaparecer – de sair de determinada circunstância, colocar a cabeça embaixo das cobertas e ficar lá e, em seu extremo, de se suicidar. Mais comumente temos o nível específico, no qual há um apego ao desejo de não ser ou se manifestar enquanto um determinado tipo de self – não ser um self que atravessa certas experiências, por exemplo, não ser um self que se mantém acordado rolando na cama no meio da noite, não ser um self que sente-se triste, amedrontado ou raivoso, não ser um self que falha com os outros, não ser um self que tem dores nos joelhos e nas costas, não ser um self que tem uma mente que vagueia progressivamente enquanto tenta meditar, não ser um self que ainda tem diversas coisas por fazer em uma lista de afazeres etc.
Você provavelmente percebeu que, assim como quando ilustramos o anseio de ser, incluímos na frase a estrutura “não ser um self que” e a razão para tanto é que, com respeito a criação de dukkha, há uma diferença sutil, mas absolutamente crucial entre o simples desejo de não ter uma certa experiência e o desejo de não ser um self que atravessa esta experiência. É este envolvimento do self que torna tão difícil abandonar certas experiências. Podemos ilustrar isso retornando ao exemplo da sessão de meditação.
Se somos capazes de focar na sessão de meditação enquanto uma experiência e de lembrar a condicionalidade fundamental de todas as experiências, então conseguiremos reconhecer como o desenrolar de uma sessão de meditação em um retiro será determinada por uma ampla gama de fatores como o quão cansados estamos, quanta dor corporal estamos experienciando, o que sustentávamos em mente no início da sessão, qual o dia do retiro, o quanto estamos comparando nossa experiência dessa sessão com a sessão anterior, o quão gentis somos com nós mesmos e assim por diante.
Se conseguirmos reconhecer a condicionalidade de nossa experiência nestes termos, podemos sentir certa decepção pela improficuidade da sessão, mas não iremos experienciar grande necessidade de que as coisas não sejam desse jeito e não iremos nos preocupar com pensamentos que questionam o que tem de errado conosco ou com nossa meditação.
A situação seria um tanto diferente se nós estivéssemos apegados ao desejo de não ser o tipo de self cujas sessões de meditação não dão certo. Uma vez que esta dimensão egoica se apresenta, a experiência de uma sessão perturbada de meditação não é mais encarada como padrões de condicionamento que vieram a se manifestar em determinada ocasião, mas em termos muito mais rígidos e vinculados aos aspectos gerais do self.
As implicações, então, são muito mais amplas e se estendem mais adiante no futuro, dependendo de como esta visão de si que é incapaz de meditar se aninha na vasta estrutura de visões de si e modelos deste self. Uma possibilidade pode ser algo deste tipo: “esta foi uma sessão de meditação fracassada. Talvez eu seja o tipo de pessoa que nunca vai conseguir dominar essa tal meditação. Mas eu não posso ser assim, pois se este for o caso, eu não deveria estar ensinando outros a meditar, certo? Talvez eu simplesmente não seja o tipo de pessoa qualificada o suficiente para ensinar MBSR no fim das contas. Mas é melhor eu não pensar assim, senão eu irei começar a me sentir uma pessoa inútil. E eu não posso me permitir ser inútil, senão eu nunca vou encontrar felicidade real e significativa…” e assim por diante.
Nós descrevemos esta situação como um fluxo de pensamentos ordenado, mas pode muito bem ser o caso de que nós não estejamos conscientes deste movimento mental; a mente pode se conduzir de modo um tanto implícito e ainda assim isto irá nos afetar.
Nesta situação, a distração da mente durante uma sessão de meditação não é percebida enquanto uma experiência isolada, surgindo a partir de uma constelação específica de condições. Aqui, com o envolvimento do self, é como se toda a felicidade futura e propósito de vida fossem ameaçados. Portanto, não é surpresa que sintamos uma necessidade tão compulsiva de não ser o tipo de self que detém estas experiências.
Poderíamos conduzir uma análise similar para a pessoa que sofreu de depressões recorrentes no passado, estando apegada a não ser um self que fica triste porque, com base em suas experiências prévias, ser este tipo de self implica em ser um self que acaba por ficar severamente deprimido. Para uma pessoa assim, qualquer tristeza é potencialmente ameaçadora e deve ser evitada.
Podemos entender um pouco mais sobre a centralidade e o quão profundamente enraizado é o nosso apego à não ser determinados tipos de self se observarmos o medo de falar em público. Uma pesquisa feita com a população norte-americana (Bruskin Associates 1973) descobriu que o medo de falar em público é o mais comum dentre todos os medos reportados, sendo indicado mais que o dobro de vezes que o medo da morte. O medo de falar em público reflete uma necessidade de não ser um self passível de críticas degradantes ou humilhações. O que aparenta ser o caso é que a experiência de ver a nós mesmos em uma situação que danifica nossa visão identificada com um self digno de certo valor social (“eu posso fazer papel de bobo”; “eu posso parecer idiota”) é considerada mais ameaçadora do que a experiência de morte do nosso corpo físico. E isto não acontece porque vivemos em uma cultura relativamente segura, na qual o risco de morte imediata é baixo – por extraordinário que pareça, o próprio Buda listou o medo de falar em público enquanto um dos cinco medos que são abandonados quando a pessoa é dotada dos quatro poderes da sabedoria, energia, uma vida imaculada e beneficência, dois mil e quinhentos anos atrás no Norte da Índia (Anguttara Nikaya 9:5; os Cinco Medos são: medo de não ter meios de subsistência, medo da infâmia, medo de ser constrangido em assembleias, medo da morte, e medo de um futuro infeliz).
É a identificação da experiência com uma sensação de um self perene que nos conduz a projetar o nosso sofrimento atual no futuro: estou cansado, estou cansado de novo, parece que sempre me sinto cansado, eu sou uma pessoa exaurida que nunca vai aproveitar a vida em seu máximo potencial. Um outro exemplo é que podemos as vezes experimentar sensações de dor, no joelho por exemplo, que parecem que não vão cessar a não ser que façamos algo a respeito. Isto, outra vez, reflete nossa sensação de “ser um self que sente dor” ao invés de simplesmente experienciar a dor como é.
Uma vez que nós nos apeguemos à este desejo de não ser esse tipo de self que vive certas experiências, nossa necessidade de evitar estas experiências, a ansiedade que advém de estar sujeitos a elas, e o estresse que vem de efetivamente vivê-las, irão aumentar enormemente. Contudo, é claro que, uma vez que a natureza das coisas é como é, torna-se simplesmente impossível nunca passar pelas tais experiências temidas, nunca ver a mente se dispersar em uma sessão, nunca se sentir triste, dizer algo que nunca será criticado etc. A sede de tanha é insaciável – não importa o quanto nós nos esforcemos, nós nunca seremos capazes de satisfazer completamente a necessidade de não ser o self sujeito à estas experiências.
Mas o que é ainda pior – a necessidade compulsiva de evitar ser um determinado tipo de self gera grande alvoroço na mente destinado à prevenir que o resultado temido aconteça ou limitar o prejuízo quando ele acontecer. Este tipo de atividade reparativa só serve para reforçar a sensação de um self e trazer ainda mais visões a respeito deste self que precisam ser rejeitadas ou alcançadas. E uma sensação de self mais forte significa que as pressões de ser ou não alguma coisa se tornam ainda mais esmagadoras, o que acresce um novo giro nesta espiral viciosa. Este processo todo foi chamado de selfing por professores contemporâneos (Olendzki, A. 2005) ou, mais tradicionalmente, ‘tornar-se’ (kammabhava) (ver Samyutta Nikaya 12).
A situação é como se sofrêssemos não só desta sede insaciável que nunca se satisfaz, mas como se ainda tomássemos água salgada na tentativa de aliviá-la, piorando a sede a cada gole.
Nós podemos identificar este processo em operação em muitos padrões mentais aversivos que caracterizam certos distúrbios emocionais. A ruminação centrada em si na depressão pode transformar o que seria apenas uma tristeza passageira em um estado mais intenso e persistente de depressão. Preocupações autocentradas podem transformar o que seriam apenas sensações passageiras de medo em uma ansiedade crônica.
O que, então, fazemos diante disso?
Pois então, dado que a Segunda Nobre Verdade identifica a origem de dukkha no apego ao desejo, segue-se que a instrução é: “o apego ao desejo deve ser abandonado”. Do mesmo modo, a essência do ensinamento de Buda pode ser sintetizada na seguinte frase: “nada deve ser apreendido ou agarrado enquanto “eu” ou “meu”’ (Budhadasa 1989, 138). Em outras palavras: não encare nada como pessoal.
Infelizmente, isto é mais fácil de dizer do que fazer. Mas é neste posto que a condicionalidade da experiência vem para nosso resgate.
O Buda realizou a compreensão simples, mas genial, de que se dukkha e os anseios são resultados de um conjunto de condições, então eles irão cessar se estas condições foram mudadas e deliberadamente remanejadas em uma nova organização.
E o que é maravilhoso sobre o Buda é que ele seguiu nesta proposta traduzindo esta compreensão abstrata em ação na sua própria vida. O que ele descobriu empiricamente é o que está expresso na Terceira e na Quarta Nobre Verdade.
A Terceira Nobre Verdade nos diz que a cessação de dukkha é possível e pode ser realizada através da cessação do anseio.
A Quarta Nobre verdade apresenta um programa de treinamento integrado, conhecido como o Nobre Caminho Óctuplo que nos permite aplicar o ensinamento. Este caminho é composto por oito elementos, cada um reforçando e integrando o anterior. Um destes elementos é a mindfulness apropriada. Mas o caminho também inclui elementos relacionados com a compreensão e a intenção, o comportamento ético e dois outros aspectos da meditação.
O objetivo final do Nobre Caminho Óctuplo é a cessação final e absoluta de dukkha, em outras palavras o nibbana/nirvana. Porém, felizmente, tanto para nós como para os clientes e pacientes de nossas aulas de MBSR e MBCT, não é necessário esperar até este momento para experienciarmos os benefícios de liberar nosso apego aos desejos. Conforme coloca o professor Tailandês Ajahn Chah: “se você relaxa um pouco, você terá um pouco de paz. Se você relaxa muito, você terá muita paz. Se você relaxa completamente, você terá completa paz” (Chah, Kornfield e Breiter 2004). Em outras palavras, seja o nosso objetivo primeiro a liberação do sofrimento superficial e evidente aqui e agora, seja ele a liberação de dukkha de uma vez por todas, o abandono do anseio e da aversão é o caminho para a paz. No segundo artigo desta série, nós vamos avaliar com mais profundidade como mindfulness apoia este processo de transformação do sofrimento.
Para concluir este artigo, iremos explorar a relevância da estrutura conceitual descrita acima para os professores de MBSR e MBCT.
Por que os professores de MBSR e MBCT devem conhecer a Primeira e a Segunda Nobre Verdade?
Quais as vantagens e benefícios para os professores de mindfulness em conhecer e compreender esta estrutura conceitual que apresentamos?
Esta questão pode ser destrinchada em dois aspectos: (1) qual o benefício de adotar qualquer estrutura conceitual para guiar o ensino de MBSR, MBCT etc.? (2) qual o benefício de adotar esta estrutura conceitual oferecida pelo Buda nas Quatro Nobres Verdades?
Sem um sistema de compreensão para guia-la, a aplicação de práticas de mindfulness à problemas de estresse, perturbações emocionais e similares acaba por se resumir ao ensino e aprendizado de uma série de técnicas. Isto permite aos alunos aprenderem a controlar aspectos da sua atenção, que dão condições de organizar e estabilizar a mente. Estes alunos, então, aprenderiam habilidades de concentração, similares àquelas oferecidas em outras práticas de concentração, como a meditação transcendental. Tudo isto é benéfico no acalmar e relaxar da mente.
No entanto, sem uma compreensão da natureza do sofrimento que estão experienciando, ou de como a mindfulness opera na redução deste sofrimento (o que será discutido no segundo artigo), nem os alunos e nem os professores têm condições de dar foco à aplicação de mindfulness de modo mais específico e efetivamente transformar o processo que dá origem e sustenta o sofrimento. Sendo assim, pacientes e clientes estariam expostos apenas a uma parcela limitada do total de recursos terapêuticos potencialmente disponíveis. E, então, o impacto benéfico dos programas de mindfulness pode acabar sendo menor do que poderia ser.
Uma outra limitação de trabalhar sem uma sistemática estruturada de compreensão quanto à operação do sofrimento e como mindfulness pode curar este sofrimento, é que quando encontramos dificuldades ou obstáculos, não há nenhuma bússola que nos guia para o próximo passo adiante – tudo o que pode ser feito é aplicar as mesmas técnicas mais intensamente, como que tentando “atropelar” um bloqueio na estrada. Ademais, sem uma compreensão subjacente que é capaz de guiar e motivar, é difícil tanto para estudantes como para professores se comprometer com os aspectos mais desafiadores da prática de mindfulness – como por exemplo ficar “íntimo” do sofrimento – os quais, de acordo com a análise que oferecemos, são justamente os expoentes do maior potencial para transformações terapêuticas a longo prazo.
Uma vez que aceitemos a utilidade de se conduzir a partir de uma estrutura de compreensão para guiar as aplicações de mindfulness, quais os pontos fortes da estrutura que descrevemos? Apontaremos três.
Primeiro, trata-se de um sistema amplo: a análise oferecida pelas Nobres Verdades é destinada à aplicação tanto em sofrimentos de menor monta até problemas de depressão extrema e crise de pânico. Esta amplitude ainda implica no seguinte: (1) ainda que professores e clientes ou pacientes estejam experimentando diferentes intensidades de sofrimento, os mecanismos subjacentes à este sofrimento são os mesmos, o que permite aos professores explorarem sensações de camaradagem e compaixão por seus alunos, bebendo da fonte de suas experiências para enriquecer sua abordagem de ensino de mindfulness; (2) alunos podem adquirir habilidades e compreensão enquanto trabalham com sofrimentos “cotidianos” de menor intensidade que são diretamente relevantes no trabalho dos problemas mais intensos que eles desejam resolver; e (3) sua experiência de prática de mindfulness enquanto parte de um programa terapêutico pode ajudar a abrir uma porta para que os pacientes e clientes se interessem em explorar a relevância de mindfulness em outros campos de suas vidas.
Segundo, a visão de dukkha enquanto um fenômeno universal e inevitável dada a operação e funcionamento de nossas mentes pode ajudar a reduzir a identificação pessoal com o sofrimento, que, conforme observamos, é um aspecto central na criação do sofrimento conforme a análise do Buda. Se esta análise for correta, isso também significa que a sedutora jornada por qualquer “solução rápida” do problema do sofrimento (“se apenas eu tivesse aquele/a carro, casa, parceiro, carreira, aparência, conhecimento, nacionalidade etc. eu seria feliz”) estará sempre fadada ao fracasso. Se este for de fato o caso, é bom que saibamos disso.
Terceiro, esta é a estrutura de compreensão que originalmente conduziu à integração e desenvolvimento da prática de mindfulness como um componente central do programa integrado de redução e eliminação do sofrimento. Dois milênios e meio de experiência na aplicação de mindfulness neste contexto nos fornecem uma base inestimável para o refino e desenvolvimento do uso de mindfulness na cura do sofrimento. Evidências não acadêmicas dentro da tradição também oferecem vários exemplos demonstrando que, quando guiada por esta estrutura de compreensão das Quatro Nobre Verdades, mindfulness “funciona”. A maior parte das evidências mais recentes e sistemáticas dentro do contexto da MBSR e MBCT que provam que mindfulness “funciona” também advém de estudos nos quais os instrutores trabalhavam dentro de uma abordagem que, de um jeito ou de outro, se encaixava no sistema proposto pelo Buda.
Referências
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