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A CONSTRUÇÃO DE MINDFULNESS - Andrew Olendzki - Ciência Contemplativa

A CONSTRUÇÃO DE MINDFULNESS – Andrew Olendzki


Resumo.
          Mindfulness é examinada usando o sistema Abhidhamma de classificação de fenômenos (dharmas) conforme encontrado na obra pali Abhidhammattha-sangaha. Neste modelo os fatores mentais constituintes do agregado das formações (sankhara) são agrupados de modo a apresentar uma abordagem multifacetada à prática de desenvolvimento da mente. Portanto, todos os estados mentais envolvem certo conjunto de fatores mentais, enquanto outros se manifestam enquanto a mente é treinada. Porém, configurações salubres e insalubres podem se manifestar, e mindfulness é um estado de experiência construída positivo bastante avançado. Sabedoria, o principal fator de transformação no pensamento e prática Budista, só surge mediante circunstâncias especiais. Este sistema é então colocado frente a frente com a análise dos fenômenos proposta pelo Abhidharmakosa em Sânscrito, onde tanto mindfulness como sabedoria são entendidos como fatores universais, o que oferece uma base para um modo de desenvolvimento inatista; esta percepção é então criticada de um ângulo construtivista.

          Um dos aspectos mais atraentes da extensa e expansiva tradição Budista é o sofisticado modelo de mente e corpo apresentado nos Nikayas do Canône Páli e sistematizado tanto na literatura Abhidhamma do Sul da Ásia em Páli como no Abhidharma em Sânscrito do Noroeste da Índia e além. O Buda Histórico é, com certeza, a fonte da maior parte destas ideias, ainda que elas tenham sido desenvolvidas significativamente por muitos outros mestres com a passagem do tempo e a apropriação da tradição espiritual por novas comunidades. A análise e descrição exaustiva e detalhada desta experiência presente nestes ensinamentos são de singular interesse à pensadores modernos, tanto em razão de seu caráter e tendência empíricos, como devido a sua afinidade com o pensamento pós-moderno. Enraizadas em práticas meditativas yogicas tradicionais e articuladas com grande precisão intelectual, elas oferecem uma perspectiva dinâmica e orientada à processos da experiência enquanto uma série de eventos cognitivos interdependentes, emergentes e cessantes a cada instante conforme os sentidos encontram dados ambientais e a mente constrói um universo de significados para interpretar estas informações e responder à elas a nível tanto emocional como comportamental. Ademais, este sistema de pensamento vai além da mera descrição, oferecendo uma orientação prática para a potencialização do bem-estar, que é realizada a partir da superação das compulsões habituais derivadas da reatividade diante de prazer/dor e do desenvolvimento de uma compreensão efetiva da natureza da experiência humana.

          Este antigo conhecimento sobre como a mente e o corpo constroem a experiência e como o sujeito pode usar este conhecimento para obter maior saúde e felicidade fundamenta a tradição inicial do Budismo, mas foi gradualmente sendo relegado à contextos acadêmicos e meditativos mais restritos conforme o Budismo cresceu em popularidade, tomando rumos mais devocionais e culturalmente sincréticos. Tal conhecimento vem sendo redescoberto pela atual geração de estudiosos e professores, e é de uma importância especial para as áreas contemporâneas voltadas ao estudo da experiência humana e do desenvolvimento do bem-estar. Entre estes estudiosos se encontram cientistas cognitivos e psicólogos, e os muitos profissionais que dialogam com estas disciplinas. O pensamento Budista em seu contexto inicial emprega um vocabulário técnico preciso em definições, que pode ser útil na identificação e deslindar dos obscurantismos da experiência subjetiva. Ele também oferece um exame detalhado de mecanismos de atenção, que podem ser úteis na circunscrição de uma definição mais adequada de mindfulness e estados mentais vinculados, podendo mesmo sugerir meios de mensuração de níveis mais ou menos elevados de atenção. De valor singular à agenda terapêutica é a orientação básica destes ensinamentos na direção da transformação e alívio do sofrimento, uma vez que os ensinamentos escalonam o processo em uma escala do estado mental aflitivo até um estado de profundo bem-estar independente de circunstâncias.

          Aquilo que melhor caracteriza o modelo de mente e corpo expresso na literatura inicial do Budismo é a decomposição da experiência em constituintes fenomenológicos chamados de dharmas, e da organização e classificação destes dharmas de diferentes maneiras, estruturando-os como partes com funções e definições delineadas de um sistema complexo e interdependente. Do mesmo modo que o mundo natural se manifesta de uma forma a determinado nível escalar e de outra conforme examinamos com mais proximidade e profundidade, também o pensamento Budista entende que a maneira como vivemos a nossa experiência comum, a nível de macro-construção, difere significativamente de seus processos constituintes a nível micro, revelados a partir de uma investigação minuciosa da mente concentrada. Por exemplo – pode ser facilmente demonstrado, tanto experiencial como neurologicamente, que aquilo que aparenta ser um fluxo ininterrupto de experiências contínuas e coerentes é, na verdade, uma série de eventos mentais e sensoriais discretos, que surgem e cessam em rápida sucessão, sendo a sensação de continuidade e coerência narrativa fruto de nossa capacidade imaginativa mais desenvolvida. No núcleo do discernimento Budista, está a discrepância entre o que aparenta ser, que é entendido enquanto uma compreensão equivocada, ou ainda uma delusão, e aquilo que é tal qual, chamado de sabedoria. 

          Um dos aspectos centrais deste modelo, que é raramente encontrado em modelos psicológicos ocidentais correspondentes, é a caracterização qualitativa dos vários dharmas enquanto salubres e insalubres. As palavras usadas para esta caracterização (kusala/akusala em Páli), podem ser traduzidas como “saudável” e “não-saudável”, desde que seu significado não determine um aspecto moral ou definição normativa de “certo” e “errado”, mas sim que funcionem enquanto uma descrição de fatores que contribuem ou dificultam o resultado do bem-estar, redução do sofrimento e a capacidade de compreensão.  As palavras também contêm uma dimensão de “hábil” e “inábil”, o que demonstra que a prática Budista de integridade (sila) é entendida como uma habilidade que pode ser aprendida, pois mesmo o comportamento mais atroz e desconcertante é evidência não de uma natureza inerentemente má, mas de uma falta de compreensão. A centralidade deste juízo ético revela a extensão do sistema inteiro, tanto nas origens presentes no Nikaya, como na continuação através do Abhidhamma, enquanto uma ferramenta para potencializar a transformação pessoal e psicológica e não como um exercício intelectual de elaboração doutrinária.

          Outro constituinte importante deste sistema é a distinção feita entre objeto de consciência de um lado e a atitude ou envolvimento emocional com este objeto de outro.  O que é conhecido a partir da cognição consciente é uma coisa; como é conhecido – é dizer, qual a qualidade da mente que conhece – é outra completamente diferente. Portanto, muitos dos dharmas classificados no sistema Abhidhamma correspondem ao que, em outros contextos, podemos chamar de atitudes emocionais, e elas são importantes para compreender como a meditação é abordada no pensamento Budista em seu contexto inicial. Uma parte do treino em meditação tem a ver com aprender a focar a mente em um objeto em particular ou em uma série de objetos emergentes, mas a maior parte do treino tem a ver com cultivar qualidades específicas na mente através das quais os objetos são apreendidos. A tecnologia da atenção é uma questão de como o agregado da consciência (vinnana) interage com o agregado da forma material (rupa), conforme as formas se manifestam nos órgãos sensoriais do corpo e nos objetos percebidos no ambiente; contudo, o desenvolvimento de mindfulness e discernimento é mais uma questão de como o agregado das formações (sankhara) coemerge com os outros agregados. Isto deve ficar mais claro conforme examinamos os detalhes de como a experiência é construída.

 
A construção da experiência
          A consciência emerge e cessa a cada momento porque é mais como um processo ou evento em passagem do que algo que existe enquanto um ente estável e identificável. Ela é caracterizada pelo “conhecer” e, portanto, só pode surgir em relação à um objeto que é conhecido e um órgão a partir do qual este objeto é conhecido. Seis classes ou modalidades de consciência são enumeradas, as quais correspondem a cinco órgãos sensoriais (ocular, auditivo, olfativo, gustativo e tátil) e a mente enquanto o sexto elemento, assim como também temos cinco objetos sensoriais (formas, sons, odores, sabores e texturas) e como um sexto elemento temos o pensamento (objeto da mente). O ponto de partida ou fundação, portanto, de toda experiência é um episódio cognitivo dentro de uma ou outra destas seis modalidades, que ocorrem de novo e de novo em uma sequência temporal a qual nos referimos como fluxo de consciência. Uma vez que a consciência se manifesta na dependência de órgãos sensoriais e objetos que estão constantemente mudando, ela se encontra sempre “se movimentando e oscilando, impermanente, mudando e transformando” conforme a citação.[1] Ademais, a consciência não carrega nenhuma característica senão o conhecimento ou cognição de um objeto, de modo que todas as texturas e qualidades da experiência são apoiadas por outras funções mentais surgindo em diferentes combinações. Uma apreensão detalhada, portanto, de um momento em particular da experiência consiste primeiro em uma identificação de qual dos seis modos de consciência está operando (é dizer, na dependência de qual par de órgão-objeto) e, segundo, quais dharmas ou fatores constituintes estão coemergindo com a consciência para formatar a experiência como um todo. Este procedimento de descrição de estados mentais está delineado nos Nikayas e é consideravelmente refinado na literatura do Abhidhamma.

          Ao invés de nos engajar em uma revisão sistemática desta metodologia, que seria um desvio significativo de nosso destino, foquemos em um aspecto em particular deste mapeamento de dharmas – um aspecto que pode se provar útil à compreensão da definição e da função de mindfulness. Tratemos do agrupamento dos dharmas em diversas categorias, conforme eles emergem e cessam em um determinado instante de consciência. De acordo com a análise do Abhidhamma, sintetizada no Abhidhammatthasangaha[2], sete fatores mentais surgem juntos em todos os estados de consciência, sendo, portanto, chamados de universais; seis outros fatores podem ou não estar presentes em um determinado instante de consciência, sendo, portanto, chamado de ocasionais. Para além destes dois grupos, 39 outros fatores mentais são classificados entre insalubres e salubres, mas fatores de um destes grupos não irão surgir nunca em conjunto com os outros – eles são mutuamente exclusivos. Por fim, estes 39 estados são divididos em 4 universais insalubres; 10 ocasionais insalubres; 19 universais salubres e 6 ocasionais salubres. Portanto, de acordo com esta perspectiva, nós detemos seis tipos diferentes de agrupamentos de fatores mentais que coemergem com a consciência para dar forma e textura à atitude ou emoção com a qual um objeto é processado cognitivamente. Toda a extensão de configurações individuais é um tanto mais complexa que isso, mas estes seis agrupamentos básicos já servem como um modelo que, por assim dizer, delineia a experiência mental em seis níveis de operação, e são estes seis níveis que podem nos ajudar a compreender como a experiência pode ser entendida em uma sequência gradual no âmbito da consciência, em uma escala de menor atenção para maior atenção.

Os universais
A manifestação mais simples da mente é caracterizada pelos fatores mentais universais, inerentes a todos os momentos de consciência. Não é possível, de acordo com o Abhidhamma, que a consciência se manifeste com menos do que sete fatores mentais, mas pode ser que ela se expresse com apenas estes sete e nenhum outro mais. Portanto, mesmo as formas mais austeras de consciência incluem as funções mentais de: contato entre consciência, o objeto e órgão; sensação que pode ser agradável, desagradável ou neutra; percepção do objeto enquanto algo que é simbolicamente categorizado de acordo com a experiência prévia; volição ou resposta intencional ao objeto, que produz karma; um nível de foco que estabiliza um objeto de cada vez; uma qualidade coesiva de vitalidade mental que sustenta e apoia o funcionamento interdependente dos sete fatores; e a função da atenção que dirige os fatores associados na direção de um objeto, como um leme dá a direção de um barco. O fato de estes dharmas estarem sempre presentes significa que eles devem abarcar mesmo os estados mentais mais irrefletidos. Nós, portanto, estamos sempre exercitando algum tipo de atenção, mesmo que não estejamos conscientes disso ou se o fazemos prestando atenção em um objeto diferente do que a princípio nós desejaríamos estar prestando atenção. Do mesmo modo, a mente está sempre em foco em um único objeto, mesmo em momentos completamente dispersos, ainda que o objeto sob a qual ela está focada mude de momento a momento. Se não tivéssemos esta capacidade básica de foco e atenção, a experiência mental coerente não seria, a princípio, possível.

Os ocasionais
Para além destes sete fatores universais, outros seis estão listados que podem ou não surgir individualmente ou em conjunto. São eles: pensamento aplicado, através do qual o sujeito deliberadamente aplica sua atenção em um objeto a sua escolha; pensamento preservado, o fator mental que permite ao sujeito sustentar a atenção sobre um objeto no decorrer de vários instantes mentais; decisão, um estado de engajamento confiante e entregue a um objeto; energia, um fator que cria sustentação e suporte aos outros, trazendo um nível mais elevado de interesse; alegria, a qualidade de entusiasmo elevado; e impulso de ação, um desejo de agir que não está fundado em apego ou ambição, mas que impele a mente a iniciar uma ação adequada. Estes são os fatores que desenvolvemos quando treinamos em meditação, uma vez que o treino consiste em conscientemente direcionar a atenção e a sustentar em um objeto determinado, como por exemplo a respiração. A estabilidade de foco implica em decisão, requer energia e pode resultar em alegria – o impulso permite ao meditante transitar sua atenção de uma parte do corpo para a outra, ou ainda na direção do bem-estar de todas as criaturas ao seu redor, de modo a não se engajar em desejo ou compulsão. Estes fatores podem nem sempre se manifestar do momento em que sentamos até o tocar do sino uma hora depois – do mesmo modo que um jogador de baseball está em jogo mesmo quando sentado como receptor ou esperando a bola como primeira base. Porém, o sucesso do treinamento mental deliberado envolve, nem que por um instante, alguma combinação destes fatores mentais.

Os universais insalubres
A questão quanto aos fatores ocasionais mencionados acima é que eles são eticamente variáveis, indicando que eles podem ser operantes em estados mentais salubres e insalubres. Todos os estados mentais insalubres serão compostos por mais quatro fatores universais: a delusão, entendida como o não entendimento de verdades fundamentais sobre a experiência, como a impermanência, a não essencialidade e as causas do sofrimento; inquietude, enquanto um estado de agitação que balança a mente como vento sobre a água; a suspensão de consciência, que é a inoperância momentânea do estado inerente de autopreservação e respeito que nos impede de cometer ações mal direcionadas; suspensão de respeito, que é o desligamento do sentido inato de respeito à direitos e opiniões de outros que mantém nosso comportamento dentro de um grupo de normas socialmente convencionadas. Este é o conjunto mínimo de fatores mentais que irão surgir na mente em qualquer instante de desvio de conduta, juntamente, é claro, com os outros sete universais. No caso dos universais, é tudo ou nada – quando a delusão está presente, os outros três irão necessariamente se apresentar. Um ponto interessante desta análise é que a inquietude é sempre considerada insalubre, sugerindo que qualquer prática que encoraje o relaxamento e a tranquilidade são inerentemente saudáveis. A redução da inquietude da mente é uma prática transformativa e útil em si mesma, uma vez que naturalmente conduz à eliminação de outros fatores coemergentes como a delusão, purificando, portanto, o momento consciente das toxinas e impurezas que maculam a consciência e a liberando da insalubridade. Outro ponto de interesse é a sugestão de que respeito e consciência operam naturalmente enquanto uma espécie de sistema imunológico ético, protegendo os indivíduos e a sociedade de ações prejudiciais a nível gregário, sistema este que é suprimido nos momentos em que a ação prejudicial é conduzida.

Os ocasionais insalubres
Conquanto a delusão possa se manifestar em maneiras simples de modo a envolver apenas os quatro universais insalubres, o mais comum é que a delusão venha acompanhada de avidez e ódio, os outros dois componentes das três toxinas. No entanto, avidez e ódio de fato nada mais são que expressões opostas do mesmo impulso – o desejo. A avidez é o desejo de querer, gostar ou permanecer apegado àquilo que é prazeroso ou gratificante, conquanto que o ódio é o desejo de não querer, não gostar ou mesmo ignorar ou destruir aquilo que é desprazeroso e identificado com a dor. Sendo assim, avidez e ódio são mutuamente exclusivos e não podem surgir ao mesmo tempo em um momento mental. O sujeito pode experienciar delusão e avidez, delusão e ódio ou delusão simplesmente, mas nunca experienciará avidez e ódio no mesmo instante. Quando aparenta ser este o caso, o modelo do Abhidharma entende que na verdade os dois estão simplesmente se alternando um após o outro em rápida sucessão, com a ilusão de simultaneidade sendo construída a níveis mais elevados de organização mental. Outros fatores insalubres que podem surgir em conjunto com a delusão são visão errônea, orgulho, inveja, avareza, preocupação, preguiça, torpor e dúvida. Uma forma de encarar estes insalubres é como tons de cor misturados a partir das três cores primárias da avidez, ódio e delusão.

 Do ponto de vista da prática de meditação, não há muita diferença entre os dois grupos de universais e ocasionais insalubres – ambos estão servindo como obstáculos à serenidade e a clareza mental. Neles estão incluídos, por exemplo, a clássica lista dos cinco impedimentos (desejo sensorial, má vontade, inquietude e remorso, preguiça e torpor, dúvida), fatores mentais que precisam ser temporariamente abandonados para que a mente alcance um nível de concentração inicial e comece o processo de atenuação de consciência conhecido como absorção meditativa (jhana). Para nossos propósitos é suficiente dizer que muito pouco progresso na direção da transformação pode ser alcançado enquanto alguns dos estados insalubres estiverem emergindo na experiência, e aprender a abandonar estes estados é uma parte fundamental do caminho. Por exemplo, ainda que seja importante ser capaz de perceber o emergir e o submergir de todos os estados mentais, capturar a sensação de incômodo (uma forma moderada de ódio – uma rejeição ao que está acontecendo) com uma atitude de incômodo só irá reforçar esta qualidade insalubre. Do mesmo modo, evitar, reprimir ou ainda querer afastar este incômodo só irá garantir que ele vai retornar mais tarde com mais urgência e intensidade. O caminho do meio entre aceitar e rejeitar a experiência do incômodo é percebe-lo, entende-lo como o fator insalubre que é, e gentilmente relaxar a tensão depositada sobre ele. Todos os outros estados insalubres precisam ser neutralizados do mesmo modo e irão apenas proliferar quando diante de outros estados insalubres.
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Os universais salubres

Em conjunto, existem 19 fatores mentais que surgem simultaneamente em todos os momentos mentais salubres, e eles compõe uma lista notável. Mindfulness é um destes fatores, entendido como uma atitude ou posicionamento emocional diante de um objeto de consciência. O sujeito reconhece um objeto com uma qualidade de atenção moldada a partir de mindfulness, isto é, de presença mental, não esquecimento e certa estabilidade de foco. Enquanto um fator salubre universal, mindfulness exclui a inquietude, delusão e outros estados insalubres, e não pode surgir no mesmo momento que eles. Ela também é um estado mental que surge para além de níveis mais básicos de atenção, intenção e foco uniforme, e que surge para além de fatores que ajudam a treinar a mente, como a aplicação e sustentação de atenção sobre um objeto de consciência determinado e a geração de energia ou júbilo. Os fatores que surgem em consonância com mindfulness em quaisquer circunstâncias também ajudam a defini-la e refinar como ela funciona na mente. ­­­Não-avidez e não-ódio ajudam a demonstrar que a atenção em mindfulness não se inclina a favor ou contra um objeto, mas expressa uma atitude de equanimidade. É aqui que as definições modernas de mindfulness encontram o sentido de não julgamento diante de um objeto e de aceitação das coisas tal qual são. Surgindo junto à mindfulness está a dupla de guardiões consciência e respeito, que não estão presentes em nenhum dos estados insalubres, assim como a confiança ou , compreendida como uma segurança básica que advém da dispersão das toxinas. Estes seis fatores emergentes com mindfulness são acompanhados de outros seis que podem ser aplicados em dois sentidos – na consciência em si mesma e nos fatores mentais associados: tranquilidade, leveza, maleabilidade, manutenção, proficiência e retidão. Estas podem ser encaradas como qualidades de mindfulness, formatando ainda mais a atitude com a qual o objeto será conhecido a nível consciente, quando se torna um objeto de um estado ciente plenamente atento, ao invés de um simples objeto consciente. Todos estes 19 fatores salubres universais irão surgir e desaparecer em grupo, não apenas na prática da meditação formal, mas a qualquer momento que o sujeito se engaje em pensamentos, ações ou falas salubres. Portanto, mindfulness é um estado mental que não é extraordinário e pode surgir com frequência; a meditação mindfulness, porém, envolve o cultivo deliberado em uma série de momentos mentais.
Os ocasionais salubres
O conjunto final de fatores a se considerar são aqueles que estão fundados sobre os fatores salubres universais. Eles são seis, que só podem surgir se os 19 anteriores estiverem presentes, mas que podem ou não surgir juntos um do outro. Três deles são elementos do caminho óctuplo; fala correta, ação correta e meio de vida correto. Torna-se um pouco difícil determinar por que estes são fatores mentais, uma vez que aparentam ser descritivos de padrões de comportamento e não estados psicológicos, mas eles são descritos como presentes na mente em qualquer momento no qual o sujeito se abstém deliberadamente de agir negativamente em um dos três modos. Os outros dois são compaixão e alegria apreciativa, dois dos quatro brahma-viharasi ou estados mentais ilimitados (os outros dois sendo bondade amorosa e equanimidade, ambos na lista dos universais salubres). Isto quer dizer que o sujeito pode ser simplesmente mindful – um estado que inclui benevolência e equanimidade diante de um objeto – ou o sujeito pode ser mindful e ainda compassivo ou apreciativo, o que é acrescido à mindfulness. A compaixão adiciona uma resposta empática ao sofrimento, conquanto que alegria apreciativa adiciona uma resposta empática à boa fortuna ou felicidade. E, por fim, podemos incluir a sabedoria enquanto fator salubre ocasional. Sabedoria no pensamento Budista corresponde à uma qualidade de compreensão da natureza das experiências, de visão clara da impermanência, interdependência e impessoalidade de todas as coisas, assim como de observação da originação e cessação do sofrimento conforme ele se manifesta de momento a momento na experiência. É apenas quando o fator da sabedoria está presente que a meditação de discernimento realmente acontece, pois ainda que a mindfulness possa tomar sob sua atenção um objeto com equilíbrio e foco, é a compreensão deste objeto que é genuinamente transformadora. Conforme se expressa em uma metáfora, do mesmo modo que o segador segura um punhado de cevada em uma mão e a foice em outra, o meditante sustenta a mente com a atenção e corta os obscurecimentos com a sabedoria.[3]

 
Um modelo de atenção em camadas 

 Com estes dados dispostos, podemos agora dar um passo para trás e observar qual padrão emerge desta análise da experiência. Qualquer que seja o número de combinações possíveis de fatores mentais mapeado neste modelo, nos parece útil fazer uso dos seis agrupamentos descritos acima e postular cinco (se unirmos os fatores insalubres em um único grupo) níveis ou camadas de experiência a serem identificados. Cada uma destas camadas representa um tipo geral de funcionamento mental cujos detalhes específicos podem ser infinitamente variáveis. Todo momento de consciência irá surgir na correspondência com um ou outro dos seis pares de órgãos e objetos (olhos e formas, ouvidos e sons etc.), mas cada um será adicionalmente acrescido por alguma combinação de fatores mentais seguindo as linhas destes agrupamentos. A depender de quais fatores mentais surgirem em conjunto com a consciência, o reconhecimento do objeto será direcionado, formatado e caracterizado a cada momento pela combinação em particular de fatores mentais.

          Em sua configuração mais básica, a mente tem apoio suficiente dos fatores mentais universais para conseguir reconhecer um objeto (utilizando contato, atenção e vitalidade mental), sustentar a atenção sobre este objeto (com a volição e o foco uniforme), e compreender suas características (percepção) e texturas (sensação) suficientemente para produzir uma experiência coerente. Desde que o sujeito não esteja morto, em coma ou em sono profundo, este nível de mente está em funcionamento o tempo todo. Portanto, mesmo quando estamos divagando em pensamentos, divididos em várias tarefas ou pensando de modo desestruturado, estes fatores sempre cooperam para ajudar a guiar e apoiar a consciência enquanto ela reconhece um objeto a partir de um órgão sensorial.  Cada momento deste processo emerge, submerge e então emerge uma vez mais, com todos os sete fatores trabalhando em conjunto para gerar significado a partir da torrente de estímulos que penetra nossa consciência continuamente. Conforme os momentos de consciência se alinham em um fluxo de consciência, podemos ter a impressão de que estamos deliberadamente escolhendo transitar nossa atenção de um objeto para o outro e, portanto, direcionar a presença da nossa consciência, mas de fato o que se expressa a seguir neste fluxo é condicionado por causas que condições que estão completamente fora do escopo do reconhecimento consciente. Em um segmento do fluxo da nossa consciência, por exemplo, é possível que uma imagem mental se encadeie a outra de maneiras que são condicionadas por mero hábito, de modo que podemos nos engajar em padrões de ações e comportamentos sobre os quais estamos completamente inconscientes. Paradoxalmente, ainda que a consciência esteja sempre presente, nós podemos estar completamente inconscientes deste fato.

          Em um segundo nível de experiência, construído sobre a fundação deste primeiro, funções que identificamos com a presença da consciência começam a entrar em cena. Quando a mente está deliberadamente posicionada sobre um objeto em particular (utilizando o pensamento aplicado), ao invés de vagueando por si própria, ou fixada deliberadamente sobre um objeto de escolha (utilizando o pensamento sustentado), mesmo que esteja inclinada a se dispersar para outra direção, ela se mantém sujeita ao controle que aplicamos no processo e não está inteiramente condicionada por forças inconscientes. Conforme fatores como decisão, energia, alegria e impulso de ação são adicionados, uma sensação de engajamento consciente se amplifica. É neste nível de funcionamento mental que o treinamento da mente se dá, e a concentração aprimorada advinda da aplicação e sustentação da atenção em direções específicas se torna útil para o aprendizado de toda sorte de habilidades, tanto salubres quanto insalubres. O treinamento neste nível de mente é onde a maior parte da meditação, especialmente para iniciantes, acontece. Ao invés de permitir à mente tomar qualquer direção que seja, o praticante procura trazer e manter a atenção nas sensações físicas associadas com a respiração, por exemplo, ou em uma frase que remeta à bondade amorosa. Ou então o praticante pode permitir à mente que se disperse para lá e para cá, atravessando os mais diversos tipos de objetos, mas ao mesmo tempo tentando trazer a consciência ativada pela aplicação da atenção a cada uma das manifestações desta série de divagações. Uma vez que é necessário esforço para direcionar a mente em direções particulares, este tipo de treinamento da mente pode parecer um trabalho duro por um bom tempo.

          O terceiro e quarto aspectos do funcionamento mental podem ser melhor encarados como dois aspectos do mesmo processo, uma vez que ambos lidam com o surgimento e cessação dos estados insalubres. Sejam manifestos enquanto pura delusão, como a que acontece quando estamos confusos ou perdidos, ou sejam movidos pelas forças primitivas da avidez e do ódio, os estados insalubres são trabalhados na prática Budista de modo similar. Quando eles são muito fortes, nós somos capturados por sua força e agimos movidos por emoções e comportamentos que são prejudiciais aos outros e a nós mesmos. Na maior parte do tempo, sequer estamos conscientes de que estamos sob o domínio destes estados, caso em que os fatores universais estão emergindo conjuntamente com os fatores insalubres sem a participação dos fatores ocasionais. Em outras ocasiões, os fatores ocasionais estão presentes e daí agimos de maneiras negativas mesmo sabendo que elas são negativas. Um dos efeitos dos três venenos nestes estados é que não nos importamos se estamos agindo negativamente e podemos mesmo nos sentir estimulados pelo poder e pela gratificação oriundos destas emoções. Ainda em outras ocasiões, podemos trazer a atenção para estes estados insalubres através do exercício do pensamento aplicado e sustentado, mas estas ferramentas acabam por ficar à serviço do estado insalubre e são agregadas à delusão. Portanto, o sujeito pode estar vividamente consciente do seu ódio, por exemplo, mas tal consciência não é transformativa e pode mesmo servir para perpetuar este ódio.
          É no próximo nível que o poder transformativo da mindfulness se evidencia conforme recai sobre a experiência. Conforme mencionado acima, a mindfulness e seus fatores associados modelam a consciência de um objeto de modo muito diferente que a mera atenção. Mindfulness não é apenas atenção aprimorada, mas a atenção que se tornou confiante, benevolente, equilibrada e fundamentalmente salubre. Sendo assim, ela não se sustenta apenas sobre os sete fatores mentais universais, como todos os outros estados mentais, mas também sobre os fatores ocasionais. A atenção básica (incluída entre os universais) é aumentada pela consciência deliberadamente atenta (incluída entre os ocasionais), e então é posteriormente refinada e desenvolvida pela atenção plenamente atenta [mindful attention], que é sempre um universal salubre. Por exemplo, nós respiramos o tempo todo e podemos ou não estar conscientes deste fato devido à um sem número de condições. Quando nos distraímos por algum fenômeno, podemos nos perder da respiração; quando nos tornamos incapazes de respirar ou quando ficamos sem fôlego a atenção naturalmente recai sobre a respiração; no entanto, nestes casos nossa atenção está quase que “trombando” na respiração como que por acaso (ainda que, de acordo com a perspectiva Budista, sempre existe uma causa para a atenção ir na direção que vai, não importando se estejamos ou não conscientes disso). Com o treino em meditação, o sujeito pode deliberadamente direcionar a sua atenção para a respiração, mas a qualidade desta atenção pode ainda ser um tanto ordinária, especialmente se ela se expande e contrai conforme a mente vagueia para todos os cantos do campo da experiência fenomênica. Tal atenção direcionada pode ainda estar presente em estados mentais insalubres, como quando o sujeito respira pesadamente quando está furioso ou no processo de cometer um crime terrível. Porém, quando a forma salubre da atenção se manifesta – ou seja, mindfulness – a respiração é vista de um outro ângulo, sustentada em uma base diferente e reconhecida com uma outra qualidade de mente. Nesta ocasião o tom emocional, o posicionamento da intenção e a atitude com o qual o sujeito contempla o objeto está enraizada na não-avidez, não-ódio e não-delusão, o que efetivamente exclui da mente os seus opostos, os três venenos, e mesmo que o objeto de consciência seja algo simplório como a sensação da respiração, o momento é profundamente transformador. Podemos ainda explorar circunstâncias mais desafiadoras, como quando alguém se encontra com raiva e é capaz de trazer atenção para esta raiva, aplicando mindfulness sobre a raiva a transformando em um objeto mental, um eco dos momentos anteriores no fluxo consciente, e desempoderando a raiva como uma engrenagem que dá movimento à mente. Não é possível sustentar um estado de mindfulness e de raiva no mesmo momento, portanto quando a verdadeira mindfulness se expressa, a raiva já foi subjugada por completo e se torna apenas um rastro do estado de raiva que agora se apresenta como objeto da consciência. Se a atenção salubre é sustentada de momento a momento, o fluxo de consciência por inteiro se torna purificado de suas toxinas naturalmente emergentes e as disposições salubres são reforçadas, conquanto que suas contrapartidas insalubres se atrofiam. A mindfulness sobre os estados insalubres é transformadora precisamente porque a qualidade insalubre da atenção é substituída por um posicionamento inteiramente salubre.

          O agrupamento final a se considerar é o de fatores ocasionais salubres, que surgem a partir da fundação dos universais salubres. Aqui nós nos deparamos com a sabedoria, que de acordo com nosso modelo não surge automaticamente com a mindfulness. É possível, em outras palavras, experienciar a purificação do fluxo mental através da meditação em mindfulness sem necessariamente compreender a natureza da experiência a partir da sabedoria. A prática de mindfulness amadurece até a meditação de discernimento quando o praticante percebe diretamente elementos como a impermanência, o sofrimento e a ausência de um self intrínseco no surgir e cessar dos objetos de consciência. Uma vez mais, não importa de fato qual é o objeto; é o modo de compreensão deste objeto que é importante. A sabedoria neste modelo é em si mesma tão impermanente e tênue como qualquer outro elemento da mente e do corpo. Ela surge na presença de certas condições e não pode ser sustentada se estas condições mudarem mesmo que só um pouco. O praticante tende a experienciar a sabedoria em rápidos vislumbres, que podem ser repetidos conforme a sua habilidade aumenta.

Meditação enquanto um processo

          O que este modelo oferece é um modo de compreensão estruturado do que acontece quando nos sentamos para praticar meditação. Na maior parte do tempo, o que temos é apenas a manifestação de uma forma rudimentar de atenção, conforme a mente registra as mudanças do ambiente, como a de estímulos sonoros e visuais, ou então se move de uma associação à outra de forma comum. A mente está constantemente mudando o foco de sua atenção de um objeto para o outro, e o sujeito é capaz de guiar este processo a partir do exercício da volição e da atenção para encorajar a mente a se engajar com um objeto em específico em detrimento de outros. As formas mais populares de estratégias de desenvolvimento pessoal envolvem este sentido básico de mudança da mente (1) a partir da condução da atenção de uma coisa para a outra. O que os Budistas chamam de treinamento da mente (2) inicia com este compromisso de cultivar a atenção de modo mais direcionado e deliberado. O sujeito se torna gradualmente mais fluente no exercício de posicionamento da atenção sobre um objeto determinado por um determinado período de tempo. Se o sujeito está praticando a meditação de concentração, a atenção pode se manter estável sobre um objeto por um período considerável, ou mesmo ser capaz de estabelecer um foco estável em uma longa série de objetos cambiantes. Quando nos posicionamos assim, naturalmente os estados mentais insalubres irão surgir e cessar na experiência, tanto aqueles contaminados por avidez e ódio, como aqueles meramente deludidos. O praticante irá treinar no abandono destes estados conforme eles são reconhecidos, seja imediatamente após seu surgimento ou após um longo comboio de pensamentos que nos conduz em seus trilhos. Abandonar estes estados mentais tóxicos depois que eles surgiram e proteger a mente do surgimento destes estados mentais tóxicos são práticas Budistas importantes para a purificação da mente (3). Em outros momentos, quando estas toxinas não mais se manifestam, a mindfulness pode surgir juntamente do grupo de fatores associados, e este processo também irá passar rapidamente ou se sustentará por múltiplos momentos mentais. As práticas de mindfulness cumprem a função de transformação da mente (4) fazendo, simultaneamente, bloquear todos os estados insalubres e desenvolver e fortalecer os estados salubres. E quando a mindfulness se torna estável o suficiente, as condições para o amadurecimento da sabedoria também se apresentam e potencializam profundamente o efeito transformador da mindfulness, ainda que esta expressão mental possa colapsar tão rápido quanto surgiu. A sabedoria cumpre com a função de liberação da mente (5), tanto a curto prazo, quando os efeitos inconscientes da delusão são neutralizados, como a longo prazo, quando as disposições latentes na direção da avidez, ódio e delusão são removidas por completo da mente e não tem mais condições de alvorecer.

          Nesta perspectiva, a mente não é intrinsicamente contaminada ou prístina. Ela é capaz de funcionar neste nível básico de consciência que inclui as seis bases dos sentidos externas e as seis internas, as seis modalidades de consciência correspondentes e os cinco agregados. Além disso, ela pode ser preenchida dos fatores mentais salubres e insalubres (ambos sendo formações volitivas ou sankharas) em várias combinações diferentes, que servem para clarificar ou contaminar a qualidade de consciência resultante. O treinamento da mente em geral, e o desenvolvimento de mindfulness e sabedoria em específico, irão otimizar o funcionamento da mente e culminar em sua transformação, de modo que os estados insalubres se tornam incapazes de se manifestar e a mente se torna totalmente liberada do seu sofrimento. O processo se desdobra mais ou menos como a clássica metáfora do lótus, na qual as raízes estão na lama, os ramos crescem dentro da água e suas pétalas se abrem para o céu.

 
Abhidhamma e Abhidharma

          Tudo o que foi explorado até agora advém da perspectiva do Abhidhamma Páli, cujos textos emergiram e se estabilizaram nas escolas Budistas do sul e sudeste da Ásia. Estes textos incluem trabalhos como os sete livros do Abhidhamma-pitaka e manuais posteriores como o Abhidhammatthasangaha. Existe ainda a tradição paralela do Abhidharma Sânscrito, expressa em textos desenvolvidos nas escolas Budistas do norte e noroeste da Índia e ainda em outros locais. Nela também encontramos sete livros (um tanto diferentes, é verdade) chamados Abhidharma-pitaka e compilações posteriores como o Abhidharmakosa. Na maior parte destes corpos textuais, encontramos grande similaridade e concordância entre estas duas tradições, que podem ser claramente entendidas como duas vertentes paralelas de desenvolvimento a partir de uma fonte mais ou menos comum. No entanto, na classificação dos dharmas em agrupamentos de fatores universais e ocasionais salubres e insalubres há uma divergência muito interessante entre as duas tradições. Não se trata de uma divergência trivial, e ela toca a essência dos diferentes modelos de prática e liberação que estas duas abordagens apresentam.

          No Abhidharmakosa, os fatores mentais de mindfulness e sabedoria estão contemplados nos fatores mentais universais e, portanto, encontram-se presentes, surgindo e cessando, em cada momento de consciência.[4] Eles presumivelmente são eclipsados e sobrepujados pelos fatores insalubres, mas, não obstante, permanecem subjacentes à estes estados mentais. Este modelo, portanto, está alinhado com a perspectiva tardia do Budismo que entende que a mente já é naturalmente desperta, inerentemente sábia, mas com a própria sabedoria habitualmente obscurecida por avidez, ódio e delusão. A prática, portanto, se torna um processo de desencobrir a natureza originalmente pura da mente ao invés de construir sabedoria e preparar o terreno com mindfulness.

          As implicações desta distinção são imensamente significativas, e claramente ultrapassam o escopo do que pode ser dito aqui. É suficiente dizer que a inclusão de mindfulness e sabedoria entre os fatores universais oferece um panorama para o chamado modelo “inatista” característico da tradição Budista tardia, em oposição ao modelo “construtivista” adotado pela tradição clássica (ver Dunne, 2011). Uma questão histórica que naturalmente se apresenta é se as mudanças filosóficas do sistema Abhidharma foram anteriores ou posteriores à emergência do modelo inatista do despertar. E uma questão doutrinária que naturalmente se apresenta é se uma nova abordagem perante a prática resultou em revisões do sistema do Abhidharma, ou se os padrões estabelecidos pelo Abhidharma sedimentaram o caminho para uma nova orientação diante da prática. Reafirmo que estas questões precisam ser trabalhadas em outro lugar, ainda que não seria surpresa se elas acabassem ficando presas na lógica “ovo ou galinha”. Concluiremos, então, com uma breve reflexão sobre a abordagem inatista da perspectiva do modelo construtivista exposto acima.

Uma crítica construtivista à não-dualidade

          Da perspectiva construtivista clássica dos Nikayas e do Abhidhamma, a questão da experiência dual e/ou não-dual é um tanto inquietante. Os Nikayas nos ensinam que todo evento cognitivo depende não da dualidade de sujeito e objeto, mas do tripé de órgão sensorial, objeto sensorial e consciência.[5] A união destes três fatores constitui aquilo que é chamado contato (phassa/sparsa), o ponto de partida de qualquer episódio de conhecimento. Se há de fato uma dualidade no pensamento clássico Budista, não se trata de uma cisão entre sujeito e objeto, mas entre órgão e objeto. Os eventos reconhecidos pela cognição são colisões entre mundos internos e externos, a interação de estímulos como a luz e ondas sonoras (etc.) com as matérias sensíveis da retina e do ouvido interno (etc.) que traduzem estas modulações na atividade neuronal que chamamos de consciência. O conhecimento de um objeto a partir de um órgão não é o mesmo que a relação sujeito-objeto. A consciência não é um sujeito, mas uma atividade, um processo, um evento que acontece de momento a momento. Trata-se de uma relação entre órgãos sensoriais e pensamentos de um lado, e de objetos sensoriais e mentais de outro. Trata-se de uma interface natural entre a matéria sensível dos receptores sensoriais do corpo (o que incluiria o cérebro) e a informação contida nas imediações externas e internas, que é mediada por estados mentais de reconhecimento. Esta mentalidade, portanto, é provavelmente uma propriedade emergente da materialidade, mas o mundo virtual construído a partir desta atividade mental se expressa enquanto uma fenomenologia de experiência particularmente robusta.

          A experiência do surgir e cessar dos fenômenos envolve de fato o surgimento e cessação de momentos de consciência, mas estes momentos não podem ser qualificados como um sujeito. A experiência subjetiva – o sujeito – é construído em outro momento do modelo, no ponto no qual o desejo é gerado diante dos objetos da experiência. Através do gostar ou não gostar de um objeto, o sujeito que gosta ou não gosta é criado. É o anseio, que se manifesta enquanto fixação, que dá origem ao self (atta-bhava), e apenas quando o self se expressa enquanto um sujeito propriamente dito que é possível haver sofrimento. Aquele que anseia se torna aquele que sofre, conforme é apontado pela Segunda Nobre Verdade. E como a Terceira Nobre Verdade indica, a cessação do anseio irá conduzir à cessação do sofrimento a partir da cessação da construção do self (aham-kara). Portanto, a dualidade apontada pelo pensamento Budista acerca da não-dualidade é aquela entre objeto e sujeito que gosta ou não gosta, ao invés de objeto e conhecedor do objeto. Este conhecedor, ou simplesmente conhecimento, o mero funcionamento da consciência, é um evento impessoal; o gostar ou não gostar é que é a construção identitária. Desde o princípio, nesta perspectiva, o Buda sempre direcionou seus discípulos na direção da experiência não-dual, mas isto nada tinha a ver com a relação entre consciência e o objeto de consciência. O ponto é o que acontece entre o objeto e a percepção ilusória de existência identitária que se posiciona diante do objeto. É, portanto, bastante intrigante descobrir que a solução para este “problema” nas tradições tardias se encontra na separação da consciência de seu objeto e na aspiração por uma experiência de consciência que não tem objeto algum. Esta abordagem parece preservar uma espécie de sujeito às custas de um objeto, enquanto que o ponto dos ensinamentos clássicos é a compreensão da natureza fundamentalmente ilusória do sujeito e, portanto, a apreensão do objeto pela consciência como ela realmente é (yatha-butha).

          Se a experiência não-dual tem a ver com a dissolução da relação sujeito-objeto, então, conforme a análise do Abhidhamma, ela precisa estar apontada para a eliminação da perspectiva equivocada de um self (sakkayadittthi)[6]. Isto elimina uma dicotomia; a que existe entre os fenômenos como eles realmente são e a compreensão ilusória de existência de um sujeito separado que possui uma experiência de fenômenos distintos de si próprio. Mas ela mantém intacta a dicotomia entre os órgãos e os objetos da experiência, porque cada um deles só existe a partir da interação um com o outro e, portanto, exigem o outro para sua própria definição. A cognição, portanto, permanece, mesmo quando a pessoa que é sujeito desta cognição desaparece enquanto a mera miragem que de fato é.

          O que aparenta ser o caso é que no decorrer da história e evolução destas ideias, uma confusão se estabeleceu entre os conceitos de consciência e sujeito, de modo que a consciência se tornou identificada ao sujeito em uma relação de sujeito-objeto. Eu creio que toda a conceituação de dualidade entre sujeito-objeto é uma questão herdada de escolas não Budistas da filosofia Indiana, nas quais o problema é simplificado pela postulação de uma alma ou espírito inerentemente real. No pensamento Hindu, a consciência (cit) é inextricavelmente ligada à existência real (sat), portanto torna-se inegável a existência de um conhecedor (grahaka), uma vez que existe aquilo que é conhecido (grahya). Contudo, o Buda procurou eximir a sua linguagem de todos os substantivos agentivos, e provavelmente entenderia qualquer referência à um “conhecedor” de algo “conhecido” como uma delusão fundamental.[7] Uma alma em relação a qualquer outro fenômeno constitui uma dualidade, e a liberação de uma alma resulta em um estado não-dual. Neste contexto binário de um “eu” e um “outro” parece natural explorar a distinção de sujeito e objeto filosoficamente, e parece ter sido o caso que os pensadores Budistas foram atraídos por este tipo de discurso. Mas no mundo não-binário dos ensinamentos Indianos não ortodoxos como o Budismo, no qual a consciência é compreendida enquanto um fenômeno natural e multiplamente condicionado, a situação é mais complexa. A originação interdependente e cessação da consciência (juntamente de seus órgãos correspondentes e objetos dos outros quatro agregados) se desdobrando a cada momento é uma coisa, conquanto que a construção de um sentido ilusório de existência subjetiva a partir da qual tudo acontece é outra totalmente diferente.

          Portanto, eu concordo completamente que o discernimento Budista tem a ver com a experiência da não-dualidade entre sujeito e objeto, mas a minha proposta é que isto é realizado quando o sentido ilusório da experiência subjetiva é perdido, seja brevemente, como nas perdas a curto prazo de uma substância identitária em experiências de pico, ou definitivamente, como no despertar da Budeitude. Este tipo de compreensão não-dual, portanto, não é de fato uma inovação do século IV, e já é parte intrínseca da mensagem Budista desde seus tempos primordiais.

Referências 

BODHI, BHIKKHU. 1993. A comprehensive manual of Abhidhamma. Pariyatti: Seattle.

DUNNE, J. 2011. Toward an understanding of non-dual mindfulness. Contemporary Buddhism 12: 71–88.

OLENDZKI, A. 2010. Unlimiting mind: The radically experiential psychology of Buddhism. Boston, MA: Wisdom.

PRUDEN, L. 1991. Abhidharmakosabhasyam. English translation by Louis de La Vallee Pussin. Berkeley, CA: Asian Humanities Press.

[1] Samyutta Nikaya 35:93.

[2] Boddhi (1993).

[3] Milindapanho 2:1.8.

[4] Abhidharmakosa 2:24 (Pruden, 1991, 189–90). Aqui os universais são chamados de mahabhumikas.

[5] Ver, por exemplo,  o Mahatthipadopama Sutta, Majjhima Nikaya 28.

[6] Majhimma Nikaya 48: “Assim é o caminho que conduz à originação da personalidade: toda experiência é reconhecida como “isto é meu, isto sou eu, isto é meu eu”. Assim é o caminho que conduz à cessação da personalidade: toda experiência é reconhecida como “isto não é meu, isto não sou eu, isto não é meu eu”. Percebam como o funcionamento da consciência permanece inalterado.

[7] Samyutta Nikaya 12:12: “Venerável, quem faz contato… quem sente… quem anseia…?” “Não é uma questão válida. Eu não digo “Este faz contato… Este sente… Este anseia…”. Se me perguntassem “Venerável, quais as condições que permitem o contato… quais as condições que permitem a sensação… quais as condições que permitem o anseio?” – esta seria uma questão válida.” Ver ainda, e.g., Visuddhimagga 16:90: kariko na . . . vijjati; gamako na vijjati . . .etc. (um que faz não é encontrado; um que vai não é encontrado).

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