QUANTO A ALGUMAS DEFINIÇÕES DE MINDFULNESS
Rupert Gethin
Resumo.
A primeira tradução do termo técnico Budista “mindfulness” foi feita em 1981 por T.W. Rhys Davids. Desde então, vários autores, incluindo Rhys Davids, têm tentado definir precisamente o que mindfulness quer dizer. A princípio, estas tentativas eram baseadas em leituras e interpretações de textos Budistas clássicos. A partir da década de 50, algumas destas definições passaram a ser enriquecidas pela efetiva prática de meditação. A definição de Nyanaponika, em particular, parece ter tido uma influência significativa na definição de mindfulness adotada pelos desenvolvedores da MBSR e MBCT. Ao olharmos para os vários aspectos de mindfulness contemplados pelas definições tradicionais do Theravada, percebemos que muitos não estão inicialmente aparentes nas definições contemporâneas em contextos de MBSR e MBCT. Ademais, as compreensões de mindfulness como “sem julgamento” exigem uma avaliação cuidadosa de uma perspectiva Budista tradicional. Não obstante, as diferenças de ênfase presentes nas discussões das definições teóricas podem não ser especialmente significativas na aplicação clínica de fato de técnicas de mindfulness.
Parece ser o caso de que T.W. Rhys Davids foi o primeiro a traduzir o termo técnico sati (em Páli) ou smrti (em Sânscrito) como “mindfulness” em inglês. Não temos como saber exatamente que ponderações levaram Rhys Davids a escolher esta palavra, já que, dentro do meu conhecimento, ele nunca chegou a revelar suas razões. Os dicionários que ele tinha à sua disposição – Monier Williams, 1872, Childers, 1875, Bohtlingk e Roth, 1855-1875[1] – teriam sugerido traduções como “lembrar, memória, reminiscência, lembrança, pensar em ou sobre (algo ou alguém), trazer à mente” (de Monier Williams, 1872), uma vez que este era o significado mais comum e corrente do termo mais familiar smrti em Sânscrito. É verdade que para o verbo smarati, Monier Williams oferece os seguintes significados enquanto definições: “lembrar… rememorar, trazer à mente, manter em mente, pensar em, pensar sobre, manter a atenção consciente em [be mindful of]” e talvez isso tenha conduzido à tradução escolhida: mindfulness. No entanto, Childers em seu dicionário de Páli de 1875, traz apenas a definição “lembrança”, acrescentando, talvez conscientemente atento ao fato de estar lidando com um termo técnico Budista, “estado mental ativo, atenção fixa sobre um objeto, atenção, consciência atenta, pensamento, reflexão, consciência plena”; a expressão upatthita sati ele define como “presença mental” e satipatthana como “fixação da atenção, meditação diligente”. É claro que não há motivos para acreditar que “mindfulness” é uma tradução particularmente surpreendente de sati; o OED [Oxford English Dictionary] define o termo em inglês “mindfulness” como “the state or quality of being mindful; attention; memory (obs.); intention; purpose (obs.)” [o estado ou qualidade de estar plenamente consciente, atenção, memória (obs.); intenção; propósito (obs.)”, já em 1530 (www.oed.com).
O que está claro, no entanto, é que os primeiros tradutores de textos Budistas estavam inseguros quanto a como traduzir sati enquanto um termo técnico Budista, já que palavras como “lembrar” e “memória” não pareciam se encaixar no que era exigido pela terminologia Budista. A tradução mais antiga que fui capaz de encontrar foi a de Gogerly de 1845 – “meditação correta” para samma-sati, no contexto do caminho óctuplo.[2] Em 1850, Spence Hardy explicou “smrti” como a “faculdade da razão de sujeitos morais, a consciência” (1850, 442). Três anos depois, em seu Manual de Budismo, ele mantém o termo original em diversas ocasiões (1853, 412, 413), mas explica satipatthana como “os quatro tópicos do pensamento sobre os quais a atenção deve manter-se fixa, e que devem ser adequadamente compreendidos” (1853, 497) e sati como um constituinte do despertar (sambojjhanga) – “uma determinação da verdade por força de acuidade mental” e, em seu índice, simplesmente como “consciência” (1853, 531). É fácil desdenhar destas primeiras explicações e traduções “missionárias”, considerando-as inadequadas e incorretas, no entanto, tanto Gogerly como Spence Hardy passaram muitos anos no Ceilão (atual Sri Lanka), eram proficientes em cingâles e tinham vínculos estreitos tanto com Budistas laicos como com monásticos; portanto, suas explicações e definições provavelmente refletem ao menos impressões derivadas destas interações.
Em 1881, T.W. Rhys Davids publicou traduções de sete suttas dos Nikayas Digha e Majjhima. Sua tradução do Sutta Mahaparinibbana sugere algum nível de incerteza quanto à melhor definição de sati. Encontramos traduções de sati como “atividade mental” (Rhys Davids, 1881, 9, 14, 63), como simplesmente “pensamento” (1881, 63); conquanto que satipathanas são também traduzidas como “meditações diligentes” (1881, 62, 63)[3]. No entanto, já está claro que a tradução preferida de Rhys Davids foi “mindfulness”. Em sua introdução à tradução do Sutta Dhammacakkappavattana, ele fala a respeito do samma-sati no contexto do caminho óctuplo:
Sati, literalmente, significa “memória”, mas é usada para fazer referência à frase constantemente repetida “atento e consciente” (sato sampajano); e significa a atividade e a presença mental constante, que é um dos deveres mais frequentemente frisados para ser um bom Budista (Rhys Davids 1881, 145).
Em sua tradução do primeiro volume do Digha Nikaya, de 1889, ele usa “mindful(ness)” com razoável constância[4], mas é apenas em sua tradução do Mahasatipatthana Sutta[5], de 1910, que Rhys Davids oferece uma consideração mais desenvolvida do termo. Na introdução de sua tradução, ele pontua várias coisas importantes. Ele sugere que a “doutrina” exposta no sutta “é talvez a mais importante, depois do Nobre Caminho, no Budismo clássico” e que o sutta permanece “sendo frequente e popularmente utilizado entre os Budistas que aderiram à fé tradicional”. Quanto à questão do que é mindfulness, ele comenta simplesmente que “o Suttanta irá revelar”, mas prossegue oferecendo certas observações quanto ao termo. Ele afirma que conquanto sati significa etimologicamente “memória”, no contexto Budista tal tradução seria “a mais inadequada e enganosa”, uma vez que sati significa mais amplamente “memória, lembrança, trazer a mente, manter consciência de” certos fatos específicos:
Dentre estes fatos, os mais importantes são a impermanência (o surgimento a partir de causas, e a cessação com o fim destas causas) de todos os fenômenos, físicos e mentais. E isto inclui a aplicação repetida desta consciência para cada experiência de vida de uma perspectiva ética. (Rhys Davids 1919, 322).
Aqui Rhys Davids parece estar sublinhando uma das máximas do Mahasatipatthana Sutta, que é a prática de observar como as coisas “vêm a ser” e como elas “cessam de ser”. Rhys Davids oferece algumas reflexões comparadas entre as espiritualidades Budista e Cristã:
Quando é dito aos Cristãos “seja quando for se alimentar ou beber, em qualquer coisa que faça, faça-o para a glória de Deus” demonstra-se que qualquer ação, por mais baixa que seja, com o acréscimo da lembrança (sati) divina, pode ser adornada com a aura de um alto entusiasmo moral; e como, pela contínua prática desta lembrança, um desenvolvimento permanente de caráter pode ser obtido. A compreensão Budista é semelhante. Mas a lembrança é daquilo que podemos entender como a lei natural, e não de uma deidade. Isto é uma pedra angular do sistema de treinamento moral Budista. A pedra angular correspondente no Ocidente é a consciência; e, de fato, é tão próxima da lembrança em seus efeitos que um erudito escolheu “consciência” [conscience] como uma tradução de sati – erroneamente, em nossa compreensão, uma vez que isto introduz uma ideia Ocidental no Budismo. (Rhys Davids 1910, 323)
Tenha Rhys Davids corretamente caracterizado as práticas Budistas ou Cristãs, aqui, sem dúvida, reside um ponto de debate. Não obstante, da perspectiva dos textos Budistas clássicos, não é difícil enxergar o que levou Rhys Davids a fazer a comparação que fez: a mensagem central do Mahasatipatthana Sutta pode ser sintetizada na frase “se você consistentemente “lembra” do que está fazendo em dado momento, você verdadeiramente enxergará o que está fazendo; e se você enxergar o que está fazendo, aquelas ações, palavras e pensamentos motivados pela ganância, ódio e delusão se tornarão impossíveis”. A associação de mindfulness com “consciência”, no entanto, e sua caracterização enquanto uma espécie de intuição ética não é o que tem sido enfatizado ou abordado nas definições que têm sido mais frequentemente utilizadas no contexto da terapia cognitiva baseada em mindfulness, por exemplo, que tendem a caracterizar mindfulness como um tipo de observação “sem julgamentos”.
Deixando o assunto de lado por um momento, parece claro que, com a tradução de Rhys Davids do Mahasatipatthana Sutta, “mindfulness” logo se estabeleceu como a única tradução em inglês possível para sati. Para nomear apenas alguns trabalhos significativos com a palavra, temos o de Chalmers, em sua tradução parcial do Majjhima Nikaya (1926), de Mrs. C.A.F Rhys Davids e F.L. Woodward, em sua tradução do Samyutta Nikaya (1917-1930); de E.M. Hare e F.L. Woodward, em sua tradução do Anguttara Nikaya (1932-1936); e talvez, mais significativamente, de Bhikkhu Nanamoli, em sua tradução muito influente de Visuddhimagga de Buddhaghosa, publicada em 1956 e republicada posteriormente muitas outras vezes.
Até o momento, temos considerado principalmente as primeiras traduções de estudiosos dos textos Budistas clássicos. A influência da perspectiva da efetiva prática Budista nestes textos é limitada, ainda que não possamos ignorar o fato que Rhys Davids foi influenciado em sua compreensão de satipatthana por seu contato com monges no Ceilão. Com a publicação de Path of Purification (1964), de Nanamoli, porém, nós tocamos diretamente a tradição dos praticantes monásticos Budistas ocidentais em sentido amplo, e em específico a tradição que identificou “mindfulness” como “o coração da meditação Budista”, para usar o título da importante e influente obra de Nanamoli, publicado pela primeira vez em 1954 (Nyanaponika, 1962, 14). Aqui não é o local de tentar rastrear a história desta tradição específica integralmente. Mas o que parece claro é que é esta tradição que está por trás do acolhimento ocidental moderno da meditação Budista que levou à adoção tanto do termo “mindfulness”, como de certas práticas no contexto da psicoterapia. Em sentido amplo, esta tradição pode ser remetida a professores de meditação birmaneses como Mahasi Sayadaw (1904 – 1982) e U Ba Khin (1899 – 1971); as instruções deste último foram uma das influências formadoras na compreensão de Nyanaponika sobre mindfulness e meditação.[6] Nyanaponika desenvolveu o seu interesse inicial na meditação mindfulness sob influência de dois monges cingaleses chamados Khemind Thera e Soma Thera. O último publicou uma tradução do Satipatthana Sutta e comentário em 1941 (Soma, 1967) depois de completar um período de prática de meditação em Burma de 1936 a 1937 e retornar ao Ceilão para passar um período no Eremitério da Ilha de Dodanduwa, criado por Nyanatiloka (1878 – 1957) em 1911 (Nyanatusita e Hecker, 2008, 36). Nyanaponika passou ele mesmo um período praticando meditação em Burma com Mahasi Sayadaw no início da década de 1950.[7]
Nyanaponika, de fato, oferece uma versão de mindfulness que é influenciada por sua compreensão do arcabouço técnico dos processos de percepção (cittavithi) encontrado no pensamento sistemático da tradição Theravada (abhidhamma). Mindfulness, ele nos diz, não é um estado “místico” – na verdade:
É uma manifestação elementar, conhecida como “atenção”, uma das funções cardinais da consciência sem a qual não há qualquer percepção ou objeto.
(Nyanaponika 1962, 24)
Nyanaponika não nos diz qual é, se é que há, o termo técnico em Páli para “atenção”. Em uma nota (1962, 112), ele indica que está fazendo referência a um estado de percepção conhecido como avajjana, “voltar-se para (um objeto)”. Certamente, na terminologia técnica do abhidhamma, este está entre os tipos de atenção mais crus que existem; curiosamente, na terminologia do abhidhamma a qualidade mental sati não está presente neste estágio do processo de percepção, algo de que Nyanaponika, que com certeza tinha uma boa base no abhidhamma, devia estar plenamente ciente. Ele devia estar se referindo provavelmente à compreensão do abhidhamma de “trazer à mente” ou “prestar atenção” (manasikara), que é uma qualidade entendida como presente em todos os atos de consciência; ademais, como nós a princípio voltamos à atenção na direção de objetos de percepção, não obstante estar fora dos limites do controle consciente, é considerado como parte crucial do condicionamento de nossas respostas emocionais subsequentes aos objetos de percepção; é dizer, como fatores que governam se nossa resposta terá “mindfulness”.[8] O que Nyanaponika parece estar sugerindo aqui é que a constituição de nossa atenção inicial aos objetos da percepção é a semente de mindfulness. Ainda que ele faça uma clara distinção entre a “atenção” inicial e a “mindfulness correta” (sammasati), ele vem a focar em “mindfulness em seu aspecto específico de ‘atenção pura’” (Nyanaponika, 1962, 30).
Quando aborda a “atenção pura”, Nyanaponika a contrapõe com nosso hábito de julgar o que percebemos da perspectiva autointeressada; ao invés de nos preocuparmos com um envolvimento desinteressado com como as coisas genuinamente são, iremos enxergar os objetos “sob a ótica dos julgamentos subjetivos” que estão atados a nossas compreensões preconcebidas sobre nós mesmos, nossa personalidade e ego (Nyanaponika 1962, 32-4). Para Nyanaponika, a atenção pura é uma forma de iniciar uma contenção desse processo, a partir da qual em cada gesto atencional nós reforçamos certos hábitos mentais; é uma forma de começar a enxergar as coisas sob uma nova perspectiva.
A compreensão de Nyanaponika da relação entre mindfulness e “atenção pura” parece ter sido imensamente influente. E ainda que ele tenha sido cuidadoso em apresentar a atenção pura como um aspecto elementar da prática de mindfulness e em distingui-la de uma compreensão mais integral de mindfulness propriamente dita – a mindfulness correta como constituinte do caminho óctuplo – tem havido ocasionalmente uma tendência por parte daqueles que escreveram sobre mindfulness de assimilá-la à “atenção pura”.
Esta tradição foi disseminada e desenvolvida no Ocidente por vários professores e estudiosos de meditação, incluindo Jack Kornfield (nascido em 1945) e Joseph Goldstein (nascido em 1944), para citar apenas dois. Trata-se, portanto, de uma tradição de meditação Budista que está fundamentada em uma abordagem específica do Satipatthana Sutta e identifica esta abordagem ao que às vezes é referido pelo termo tradicional Budista “insight” ou discernimento (vipassana).
Jack Kornfield em sua relevante antologia de ensinamentos de “Mestres Budistas Vivos” (incluindo uma mulher, Achaan Naeb, de modo que o termo “mestre” não deve ser lido associado a um gênero específico) apresenta mindfulness como “a qualidade acima de todas” que é “central à prática” de desenvolvimento de sabedoria:
A forma mais direta de compreender a situação de nossa vida, quem nós somos e como operamos, é a partir da observação com uma mente que simplesmente reconhece todos os acontecimentos igualmente. Esta atitude de não julgamento, de observação direta, permite aos eventos que ocorram de modo natural. A partir da atenção no momento presente, nós conseguimos enxergar de modo mais e mais claro as verdadeiras características dos nossos processos mentais e físicos (Kornfield 1977, 13).
Isso fornece um bom exemplo de uma definição funcional emergente de “mindfulness”. As principais características desta definição são de mindfulness enquanto uma postura de não julgamento, de observação direta da mente e do corpo no momento presente, somada a uma compreensão de que este tipo de observação é particularmente eficaz.
O uso de práticas Budistas de “mindfulness” no contexto da psicoterapia clínica ocidental surgiu na década de 1980 e início da década de 1990 e é associada principalmente ao nome de Jon Kabat-Zinn e seu trabalho com a Clínica de Redução do Estresse (fundada em 1979) e o Centro de Mindfulness na Medicina, Saúde Pública e Sociedade (fundada em 1995) na Universidade de Massachusetts.[9] O programa de Redução do Estresse Baseado em Mindfulness (MBSR) é então englobado no desenvolvimento da Terapia Cognitiva Baseada em Mindfulness (MBCT) (Segal, Williams e Teasdale, 2002). As influências Budistas diretas na abordagem de Kabat-Zinn ficam claras em uma larga quantidade de escritos seus: certamente a tradição de meditação de discernimento e de mindfulness que discutimos acima é uma das principais influências, ainda que ele também cite outras práticas de meditação Budistas e seus primeiros artigos façam referência a outras tradições contemplativas que não o Budismo.[10] Nos últimos 20 anos, o uso de MBSR e MBCT enquanto psicoterapia clínica na América e na Europa tem aumentado consideravelmente. Neste contexto, as origens Budistas de mindfulness, ainda que não sejam exatamente um segredo, são frequentemente subestimadas ou sequer mencionadas; a abordagem é prática e o que é enfatizado é a utilidade terapêutica da mindfulness e não as credenciais Budistas, ainda que estas sejam ocasionalmente sugeridas. Portanto, na introdução da obra The mindful way through depression (2007), Williams, Teasdale, Segal e Kabat-Zinn falam do uso clínico de práticas meditativas:
Cultivar um tipo particular de consciência, conhecido como mindfulness, que teve origem nas tradições de sabedoria asiáticas. Estas práticas… têm sido parte da cultura Budista por milênios… nós logo descobrimos que a combinação da ciência cognitiva ocidental e das práticas orientais era justamente o necessário para romper com o ciclo da depressão recorrente. (Williams et al, 2007, 5)
A obra anterior de Segal, Williams e Teasdale, Mindfulness-Based Cognitive Therapy for Depression (2002), em contrapartida, menciona a “meditação mindfulness Budista” apenas em uma passagem (2002, 44), ainda que recomende alguns manuais Budistas de meditação de discernimento como leituras posteriores.[11]
Como enxergamos a adaptação das práticas de mindfulness Budistas em um contexto clínico moderno de tratamento de estresse e depressão dependerá da perspectiva em questão. De uma perspectiva Budista em particular, a abstração de mindfulness de seu contexto maior de práticas meditativas Budistas pode parecer uma apropriação e distorção do Budismo tradicional, que perde de vista o objetivo Budista de extirpar a ganância, a raiva e a delusão. De uma outra perspectiva Budista, a questão pode ser vista como um exemplo de “meios hábeis” (upaya-kausalya): oferece aos seres uma oportunidade de dar o primeiro e importante passo no caminho que leva à cessação do sofrimento. Ainda de uma outra perspectiva, talvez Budista, que pode ser caracterizada como “modernista”, a situação despe o Budismo de algumas de suas bagagens culturais e históricas desnecessárias, focando no que é útil e essencial. Uma perspectiva não Budista pode considerar tudo isto como a remoção da bagagem cultural e histórica que revela a essência verdadeiramente útil até então obscurecida pela “religião” Budista. Por fim, podemos ainda tomar a perspectiva de que a unificação das práticas derivadas do Budismo e os métodos da ciência cognitiva moderna é o verdadeiro avanço que suplanta e torna redundante as práticas tradicionais Budistas. Como observadores da história social, podemos ainda enxergar estas circunstâncias como um exemplo de mudança de uma situação cultural na qual transformamos o método de cura da alma de religião em medicina e ciência.
Aqui não é local de consideração da significância de todas estas posturas possíveis em profundidade. Seja qual atitude adotarmos diante desta realidade, uma compreensão e abordagem particulares diante de mindfulness emergiu no contexto da MBSR e da MBCT; e, dada a proeminência do Budismo na concepção geral de mindfulness, parece valer a pena considerar se a tradução da Índia Antiga para o centro de mindfulness moderno foi direta e adequada ou se alguma coisa se perdeu nesta tradução.
Uma consideração mais ampla da questão exigiria uma discussão não somente da compreensão de mindfulness, mas ainda das práticas específicas utilizadas tanto no contexto clínico como no Budista; isto está além do escopo da presente discussão, que está limitada a certos aspectos da compreensão de mindfulness.
Conquanto algumas discussões recentes sobre mindfulness no contexto da psicoterapia moderna problematizem a definição da palavra, talvez a definição mais citada seja a definição “operacional” de Kabat-Zinn: “mindfulness significa prestar atenção de um modo específico: de propósito, no momento presente, e sem julgamento”.[12] Uma definição mais completa também é oferecida:
Um tipo de consciência não elaborativa, sem julgamentos e focada no presente na qual cada pensamento, emoção e sensação que surge no campo atencional é reconhecida e aceitada como é.
(Bishop et al. 2004, 232).
Conforme já sugeri, os elementos essenciais de tal definição podem ser encontrados nas caracterizações de mindfulness que emergiram no contexto explicitamente Budista dos escritos de Nyanaponika e Kornfield.
Encontrar uma definição de mindfulness tão sucinta quanto estas nos textos do Budismo Antigo não é tão fácil. Tais definições clássicas tem um caráter um tanto diferente. Em resposta à questão “o que é a faculdade de sati” nos responderam que alguém que possui sati “possui sati perfeita e compreensão: ele é alguém que se lembra e retoma o que foi feito e dito há muito” (S V 197-98).
Outra resposta clássica a uma pergunta direta quanto às características de sati é encontrada no Milindapanha (Mil 37-38) onde está explicado há duas características (lakkhana) para sati: “trazer à mente (apilapana) e ‘tomar posse’ (upaganhana)”. Portanto, sati é explicado enquanto trazer a mente qualidades salubres e insalubres de modo que o meditante fica em posição de conhecer quais as qualidades são as que ele deve perseguir e quais ele deve evitar; isto é equivalente à forma pela qual o tesoureiro de um rei constantemente relembra o rei de sua glória e propriedades. Em seguida, se diz que sati segue o resultado das qualidades de modo que o meditante pode remover as que não são úteis e tomar posse daquelas que são úteis; isto é equivalente ao conselheiro de um rei que informa o rei sobre o que é ou não benéfico.
A literatura clássica do Abhidhamma (ver Dhs 16) lista um número de termos que pretendem ilustrar a natureza de sati que são objetos de interesse: lembrar (anussati), retomar (patissati), lembrança (saranata), manter em mente (dharanata), ausência de flutuação (apilapanata), ausência de esquecimento (asammussanata).
Estas definições antigas do Abhidhama parecem ser destoantes com a definição psicoterapêutica moderna de mindfulness, e mesmo com as definições Budistas mais modernas de mindfulness oferecidas no contexto de prática de satipatthana.
É claro, estas diferenças na definição de mindfulness podem simplesmente refletir o fato de que tem havido abordagens e concepções de mindfulness diferentes e mesmo conflitantes na história do pensamento e prática Budista. Sem efetivamente descartar esta possibilidade, penso que também é possível sugerir formas pelas quais estas definições antigas complementam o que podemos resgatar de outras discussões Budistas sobre mindfulness; deste modo, talvez possamos chegar a uma apreciação mais completa da compreensão clássica Budista.
Parece-me que o elemento central destas definições antigas é que eles entendem rigorosamente o sentido de sati enquanto “lembrar”. A ideia básica aqui é direta e clara: se é instruído ao sujeito que observe a respiração e mantenha consciência sobre ela, seja em uma longa inspiração ou curta expiração, o sujeito precisa lembrar de fazê-lo continuamente, e não esquecer depois de um, cinco ou trinta minutos. É dizer, o sujeito precisa se lembrar que o que ele precisa fazer é lembrar da respiração. Há uma dimensão maior concernente a este exercício de lembrar apontado pelo meu uso da expressão “o que ele precisa fazer”. Pois no contexto específico onde a prática de mindfulness era instruída nos textos Budistas clássicos, ao se lembrar de lembrar da respiração, o sujeito lembra que deve praticar meditação; ao se lembrar de praticar meditação, o sujeito se lembra que é um monge Budista; ao se lembrar que é um monge Budista, o sujeito se lembra que está tentando extirpar ganância, ódio e delusão. Por conseguinte, ao se esquecer da respiração, o sujeito se esquece que está praticando meditação; ao se esquecer que está praticando meditação, se esquece que é um monge Budista; ao se esquecer que é um monge Budista, se esquece que está tentando extirpar ganância, ódio e delusão. Isto parece explicar de modo coerente as meditações Budistas tradicionais enquanto “lembranças” (anussati) das qualidades do Buda, Damma e Sangha, as quais os textos parecem querer incluir no panorama geral da prática de mindfulness.
Não pretendo sugerir aqui que mindfulness é concebida em termos de uma série de reflexões discursivas como as delineadas acima, mas simplesmente que os textos Budistas antigos entendem que a presença de mindfulness, de fato, nos lembra de quem somos e quais são nossos valores. Incidentalmente, apesar das definições de mindfulness utilizadas nos contextos da MBSR e MBCT, parece ser o caso que a prática nestes contextos também comunga de algo destas características, do contrário seria difícil ver como um paciente teria motivação para manter-se fazendo os exercícios de mindfulness.
Há um outro aspecto de sati enquanto “lembrar” que, penso eu, é indicado especialmente na caracterização de sati no Milindapanha, que a entende como um chamado à mente de várias qualidades boas e ruins, benéficas e maléficas. Pois então, por exemplo, quando eu estou feliz, é difícil se lembrar do que é sentir-se infeliz; igualmente, quando eu estou infeliz, é difícil lembrar-se do que é sentir-se feliz. Em tais circunstâncias, nós nos tornamos mais suscetíveis a nos identificar com os humores e sentimentos oscilantes, o que pode resultar em um reforço destes estados mentais e um subsequente desequilíbrio. Se, em contrapartida, me lembro de como é sentir-se infeliz quando estou feliz, fico menos suscetível a me deprimir quando o sentimento passar, e mais sujeito a ter empatia com aqueles que não estão felizes. Se eu me lembro de como é sentir-se feliz quando estou infeliz, pode ser que eu tenha melhores condições de lidar com o sentimento até que passe, e me sinta menos ressentido com aqueles ao meu redor que estão felizes. Em uma perspectiva similar, se me falta mindfulness, eu posso me esquecer de como certos padrões de comportamento me fazem sentir e, por conseguinte, voltar a repeti-los. Mas se eu realmente me recordo como da última vez que agi de tal maneira senti tal e tal coisa, então pode ser mais difícil eu continuar a ceder a certos padrões de comportamento. Observações como esta nos ajudam a extrair sentido da ênfase tradicional Budista em sati como “lembrar”. Talvez seja relevante observar neste contexto as descobertas citadas por Segal, Williams e Teasdale (2002, 28-30) que sugerem que um fator significativo nas recaídas depressivas pode ser a maneira pela qual alguém vulnerável à depressão tende a se perder no humor depressivo, o que pode ser provocado por padrões habituais de pensamentos negativos.
Dois dos termos Abhidhamma dados na explicação de mindfulness indicam que mindfulness é mais do que apenas uma consciência focada no presente sobre cada pensamento, emoção ou sensação que surge. Estes termos são “ausência de flutuação” (apilapanata) e “ausência de esquecimento” (asammussanata). O primeiro termo é explicado através de um exemplo: ausência de flutuação se contrapõe ao estado no qual a mente sacode como uma cabaça flutuando na superfície da água; mindfulness, em contrapartida, é um mergulho no objeto de consciência.[13] O segundo termo nos permite fazer uma conexão clara com o campo semântico do vocabulário em Inglês que está, em grande medida, em paralelo com o do páli e do sânscrito. É dizer, a ausência de esquecimento parece se referir não necessariamente a ter uma boa memória para informações e fatos, mas sim a não ser distraído ou esquecido. O termo está relacionado nos textos Budistas a duas expressões em páli, muttha sati e upatthita sati, que literalmente significam, respectivamente, “mindfulness confusa” e “mindfulness presente”, mas que talvez possam ser traduzidas de modo mais idiomático ou mesmo exato como “distração” e “presença mental”.[14] Mindfulness, nos textos Budistas, parece então ter algo a ver com a qualidade de estar “ligado”.
Voltemo-nos agora para uma das definições Budistas clássicas de mindfulness, que é a encontrada nos textos exegéticos da tradição Theravada.
Sati é aquilo a partir do qual [as qualidades que constituem a mente] se lembram, ou é aquilo de que se lembra, ou é simplesmente lembrar. Sua característica é a não-flutuação, sua propriedade é a ausência do esquecimento, sua manifestação é a de proteger e nos manter face a face com o objeto de consciência; sua fundação é a percepção estável ou o estabelecimento de mindfulness do corpo, e assim por diante. Uma vez que se encontra firmemente assentada no objeto de consciência, deve ser vista como uma pilastra, e porque protege os portões dos olhos e demais sentidos, deve ser vista como um guardião de portal (Vism XIV, 141).
Nós já abordamos os aspectos de lembrar, ausência de esquecimento e não flutuação sublinhados aqui; “estar face a face com o objeto de consciência” é totalmente coerente com o tipo de definição de mindfulness encontrada tanto no contexto da meditação de discernimento moderna, como da MBSR e MBCT; a perspectiva de mindfulness enquanto uma pilastra, dada sua firmeza estabilizante sobre o objeto de consciência, parece apenas reforçar sua característica de não flutuação.
A manifestação de mindfulness enquanto uma “proteção” e um “guardião de portais” parece aludir à passagem descrevendo a “proteção dos portões dos sentidos” que é frequentemente repetida nos textos clássicos como um pré-requisito da estabilização de mindfulness e da compreensão clara:
E como um monge protege os portões dos sentidos? Neste caso, quando ele olha para um objeto visível aos olhos, ele não se fixa à experiência geral ou aspectos particulares. Uma vez que a pessoa que vive com o sentido da visão desgovernado pode ser afetada pelo descontentamento e pelo anseio, por qualidades negativas e insalubres, ela procura praticar examinando o sentido da visão; ela o protege e alcança a abstenção. Quando ele escuta um som com os ouvidos… cheira um odor com o seu nariz… degusta um sabor com sua língua… toca um objeto com seu corpo… se conscientiza de um pensamento em sua mente, ele não se fixa à experiência geral ou aspectos particulares. Uma vez que a pessoa que vive com a mente desgovernada pode ser afetada pelo descontentamento e pelo anseio, por qualidades negativas e insalubres, ela procura praticar examinando a mente; ela a protege e alcança a abstenção. (Ver, por exemplo, D I 70)
Um exemplo encontrado em outra circunstância (S IV 194) equivale mindfulness diretamente a um guardião de portal protegendo a cidade (o corpo) com seis portões (os sentidos). A caracterização de mindfulness enquanto uma proteção e como um guardião de portais parece intimamente relacionada a mindfulness em suas capacidades de lembrar e de presença mental. Parece ser o caso que, se temos mindfulness, então vamos nos lembrar do que deveríamos estar fazendo em dado momento (observando a respiração, por exemplo, ou prestando atenção na postura), e quando percepções, sensações, estados mentais e emoções que possam interferir surgirem, nós teremos a presença mental de não deixá-los sobrepujar nossas mentes e assumir o controle.
A expressão encontrada na definição exegética padrão de mindfulness na tradição Theravada que diz que sua base é uma “percepção estável” ou “estabelecimento de mindfulness do corpo e assim por diante” situa o cultivo e desenvolvimento de mindfulness nos tipos de práticas prescritas no Satipatthana Sutta. Uma exposição completa do Satipatthana Sutta não é possível no presente contexto, e devo me restringir a apenas algumas observações.
Em primeiro lugar, parece ser o caso que a perspectiva do Satipatthana Sutta enquanto um manual sucinto de meditação de discernimento (vipassana), e não de meditação do calmo permanecer (samatha), é uma leitura Budista mais moderna e não exatamente tradicional. Nenhum dos dois termos – samatha ou vipassana – aparece no Sutta, conquanto uma série de outros Suttas que elaboram a respeito da prática de satipatthana claramente integram-na com a prática de absorção (jhana) e concentração (samadhi) meditativas, aspectos emblemáticos da prática de samatha; o “Discurso sobre mindfulness do corpo” (M III, 88-89) aponta precisamente as práticas focadas no corpo apresentadas no Satipatthana Sutta como base de realização de absorção meditativa. As descrições pelas quais o monge observa o corpo enquanto corpo, as sensações enquanto sensações, a mente enquanto mente, as qualidades enquanto qualidades no estabelecimento de mindfulness, culminam no monge “superando seu anseio e descontentamento com o mundo”. O comentário do século V de Buddhaghosa sobre o Satipatthana Sutta indica que esta frase pode ser entendida como o abandono dos cinco impedimentos – os obstáculos básicos no alcance da absorção meditativa – através da concentração meditativa (Gethin 2001, 49-53).[15] Eu não estou preocupado aqui com tentar estabelecer uma interpretação autêntica e original do Satipatthana Sutta, apenas com demonstrar que há claras evidências nas fontes em Páli de que uma leitura tradicional do Satipatthana Sutta estabelece tanto a prática de calmo permanecer como a de discernimento, e há poucas indicações explícitas anteriores ao século XX que o restringem apenas a um método de meditação de discernimento.
Esta observação do corpo enquanto o corpo com mindfulness que envolve a superação do anseio e descontentamento com o mundo pode sugerir que mindfulness é de fato algo mais constante e desenvolvido do que simplesmente manter a atenção pura e sem julgamentos no momento presente; sugere que um pré-requisito para a verdadeira mindfulness é observar de um determinado ponto de vista de relativa serenidade e paz mental.
É possível que o “não julgamento” seja interpretado enquanto englobando tal estado mental pacífico e sereno. Isto faz surgir a questão do que se quer dizer com “não julgamento” no contexto da compreensão MBSR e MBCT de mindfulness. Conforme já vimos, para Nyanaponika está claro que o que é problemático no contexto de mindfulness são nossos julgamentos e opiniões habituais sobre como nós e os outros são; adotar o “não julgamento” quer dizer abrir espaço para uma perspectiva diferente quanto a como as coisas são. Isto claramente tem paralelo com a maneira pela qual, no contexto da MBCT, a mindfulness “sem julgamentos” pode combater o problema da “mente ruminante” (Segal, Williams e Teasdale 2002, 33-37). No entanto, de uma perspectiva Budista Theravada tradicional, uma ênfase exagerada em mindfulness como “sem julgamentos” pode sugerir que a ausência de julgamentos é o fim da prática em si mesmo, e que todos os estados mentais têm, portanto o mesmo valor – que a ganância é tão boa quanto o desprendimento, ou que a raiva é tão boa quanto a cortesia. De fato, no contexto da MBSR e da MBCT, a adoção do “não julgamento” parece ser instruída em um sentido prático e não como uma visão final da natureza das coisas, pois a questão do valor “final” de nossos estados mentais flutuantes nos conduz à complexa área de pensamento e filosofia Budista, nas quais as diferentes tradições Budistas se expressam também de maneiras diferentes. No entanto, um entendimento que é terreno comum a todas as tradições de psicologia Budista é que, ainda que – ou talvez exatamente por causa de – o objetivo seja nos livrar da ganância, ódio e delusão, ficar com raiva de nossa própria ganância, ódio ou delusão quando estes surgem, ou se apegar ao desprendimento, cortesia ou sabedoria quando estes surgem, é claramente um tipo de cilada. E talvez precisamente este tipo de abordagem prática que os pioneiros da MBSR e MBCT pretenderam destacar quando caracterizaram a mindfulness como “sem julgamentos”.
Para voltarmos à questão mais geral de uma possível distinção entre mindfulness de fato e a simples observação do que está se passando, podemos retomar as definições Budistas acima e nos atentar ao fato de que a base de mindfulness é “percepção estável” ou “o estabelecimento de mindfulness do corpo, e assim por diante”. É dizer, a observação estável e clara, a prática de observar o corpo enquanto corpo, não são garantias ou constituintes da presença da verdadeira mindfulness – de fato, o que elas fazem é estabelecer as condições que conduzem ao seu surgimento.
A perspectiva de mindfulness enquanto uma realização de uma presença mental contínua fica mais clara a partir de um exemplo vívido da literatura (S V, 170). A mindfulness perante o corpo é comparada ao caso do homem que deve prestar atenção a um vaso preenchido de óleo que carrega sob sua cabeça. O homem deve carregar tal vaso em meio a uma multidão que se aglomera para ver a mais bela moça da região conforme ela canta e dança; e conforme o homem se move entre a moça e a multidão, um outro homem o segue com uma espada e se ele derrubar uma gota sequer terá sua cabeça cortada. Em circunstâncias tais, se diz que o homem não se distrairá nem com a multidão nem com a moça; com uma qualidade de atenção similar, o monge deve cultivar a mindfulness do corpo.
Eu gostaria de concluir fazendo alguns comentários quanto à maneira pela qual mindfulness tem sido apresentada como uma prática central da meditação Budista. Conforme já vimos, isso se deve primeiro de tudo à noção de que a meditação de discernimento é a forma arquetípica de meditação Budista e que é a prática de mindfulness que está no coração da meditação de discernimento. Já sugeri que isso não parece coadunar com a perspectiva Theravada tradicional.[16] No presente contexto, dois pontos adicionais parecem merecedores de consideração.
Primeiro, o isolamento da prática de mindfulness é em parte baseado em uma tradução problemática da caracterização dos quatro modos de estabelecer mindfulness presentes no início do Satipatthana Sutta como um caminho que é ekayana (D II, 290; M I, 55). Todas as traduções inicias do Satipatthana Sutta optam por interpretar ekayana como contemplando os quatro modos de estabelecer mindfulness como o único caminho que leva à purificação dos seres.[17] Ainda que a interpretação precisa da expressão permaneça obscura, parece claro que o que ela não significa é único e que provavelmente significa “ir para apenas a um lugar” ou “singular” em oposição à ‘dupla’, podendo então ser traduzida como “direta”: “este caminho conducente à purificação dos seres – os quatro modos de estabelecer mindfulness – é direto e claro” (Gethin, 2001, 59-66).
Segundo, ainda que a prática de mindfulness seja considerada importante nos registros clássicos de meditação Budista, ela é, não obstante, apresentada enquanto uma dentre várias qualidades que precisam ser igualmente equilibradas. Nada diferente do que está exposto no contexto do próprio Satipatthana Sutta.
Em várias ocasiões nos Nikayas, o caminho Budista é sintetizado em termos de realizar os quatro modos de estabelecer mindfulness e então desenvolver os sete constituintes do despertar.[18] De fato é possível encarar o Satipatthana Sutta precisamente enquanto uma expansão desta breve declaração dado que o quarto e último estágio da estabilização de mindfulness (observar as qualidades enquanto qualidades) envolve primeiro reconhecer que os cinco impedimentos foram abandonados e isto então culmina no desenvolvimento dos sete constituintes do despertar e na compreensão das quatro nobres verdades: sofrimento, sua origem, sua cessação e o caminho para a cessação. Este despertar final é encarado enquanto uma função dos sete constituintes do despertar trabalhando em equilíbrio ao invés de como um subproduto apenas da prática de mindfulness ou de alguma outra qualidade – isto é ilustrado em uma discussão que prevê quais dos sete constituintes do despertar devemos tentar cultivar quando a mente está embotada e depressiva (lina) e qual devemos cultivar quando a mente está agitada e superativa (uddhatta). Quando a mente está deprimida, não é o momento de desenvolver tranquilidade, concentração e equanimidade; fazê-lo seria como jogar grama molhada em uma pequena fogueira que se pretende inflamar. Quando a mente está excitada, não é o momento de desenvolver a investigação das qualidades da força e da alegria; fazê-lo seria como jogar grama seca em uma imensa fogueira que se pretende apagar. É, no entanto, o momento certo de se desenvolver tranquilidade, concentração e equanimidade – assim como é preciso jogar grama molhada em uma fogueira imensa que se pretende apagar. Quanto ao constituinte do despertar “mindfulness”, é apropriado cultivá-lo em todas as circunstâncias expressas acima. Pois então, conquanto mindfulness seja proeminente no sentido de ajudar tanto circunstâncias de embotamento e agitação, ela continua sendo apenas um dos sete constituintes do despertar.
A concepção de mindfulness da MBSR e da MBCT deriva significativamente de uma tradição em particular de mindfulness no Budismo moderno. Da perspectiva clássica, quanto a sati encontrada nas fontes antigas do Budismo, esta concepção moderna parece se concentrar em uma definição um tanto econômica e minimalista de mindfulness. A versão tradicional de mindfulness toca aspectos de lembranças, recordações, rememorações, e presença mental, que parecem ser rebaixados ou mesmo perdidos no contexto da MBSR e MBCT. No entanto, isto pode ser simplesmente uma consequência de definições particularmente sucintas destacadas nos contextos da MBSR e MBCT. Tanto na tradição Budista como na MBSR e MBCT, mindfulness é parte de um conjunto de práticas, e práticas podem gerar efeitos específicos independentemente das ideias ou teorias preconcebidas sobre elas. Portanto, em sua aplicação no contexto clínico, os aspectos subsequentes de mindfulness podem muito bem se manifestar e se fazer relevantes.
ABREVIAÇÕES
A = Anguttara Nikaya; As = Atthasalinı; D = Dıgha Nikaya; Dhs = Dhammasangani; M = Majjhima Nikaya; Mil = Milindapanha; Nett = Nettippakarana; S = Samyutta Nikaya; Vism = Visuddhimagga. Edições da Pali Text Society.
Tradução: Cortesia da equipe de traduções Contemplativas: Trad. Alexandre Chami Filho, Revisão: Alex Mourão e Lama Jigme Lhawang
REFERÊNCIAS
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NOTAS:
[1] O sétimo volume contendo os verbetes smar e smrti foi publicado entre 1872 e 1875.
[2] As traduções de Gogerly de porções do Dhammacakkappavattana Sutta, conforme encontradas no Mahavagga do Vinaya (Vin I 8 – 14,) foram publicados primeiro como partes de um texto chamado “Sobre Budismo” (Gogerly 1845, 23 – 25); ele foi subsequentemente republicado em Gogerly (1908, 65- 66), e é mencionado por Rhys Davids (1881, 144).
[3] Esta traduções do Mahaparinibbana Sutta, de 1881, foram republicadas aparentemente sem modificação, em Rhys Davids (1910, 71 – 191); para estas traduções ver 85, 89, 130 (“atividade mental”), 130 (“pensamento”), 128, 129 (“meditações diligentes”). O livro de T.W. Rhys Davids, Buddhism: being a sketch of the life and teachings of Gautama, the Buddha, foi publicado pela primeira vez em 1877 (Londres) e depois revisado e republicado muitas outras vezes; eu tive acesso apenas à edição de 1882 (Londres: SPCK) na qual ele se refere à sati como “mindfulness correta” (108), “quatro meditações diligentes” (172) e “lembrança” (173).
[4] Ele traduz sato sampajano como “consciente e sereno” por toda a extensão do texto.
[5] Rhys Davids (1910, 322 – 46).
[6] Ver Bodhi (1995, 12); Nyanaponika (1962, 85 – 107).
[7] Bodhi (1995, 12). Outros trabalhos que definiram a recepção inicial de mindfulness no ocidente incluem Shattock 1958 (que oferece uma exposição do treinamento do ator sob o método de discernimento de Mahasi Sayadaw), e Thich Nhat Hanh (1976).
[8] “Mas o que determina este impulso na direção do salubre e insalubre? Alusão e definição. Pois quando a mente em alusão nos alerta adequadamente e quando a mente em definição define corretamente, não pode acontecer o surgimento de um impulso insalubre; e, do mesmo modo, quando a mente em alusão nos alerta inadequadamente e quando a mente em definição determina inadequadamente, não pode acontecer o surgimento de um impulso salubre”. (As 277-278: idam pana javanam kusalattaya vaakusalattaya vako niyametı ti? Avajjanam ceva votthappananca. avajjanenahi yoniso avajjite votthappanena yoniso vavatthapite javanam akusalam bhavissatıti a tthanam etam. avajjanena ayoniso avajjite votthappanena ayoniso vavatthapite javanam kusalam bhavissatı ti pi atthanam etam ubhayena panayoniso avajjite vavatthapite ca javanam kusalam hoti, ayoniso akusalan tiveditabbam)
[9] Ver Kabat-Zinn (1990, 1993). Curiosamente, OED (www.oed.com) hoje cita o uso especializado de mindfulness: “Esp. Com referência à filosofia do Yoga e do Budismo: o estado meditativo de permanecer plenamente consciente do momento e de manter a consciência sobre si e atento a esta consciência; um estado de intensa concentração no próprio processo mental; consciência de si”. Uma das primeiras citações que oferece para este uso do léxico é Rowe (1983), um livro escrito por um psicólogo clínico sobre o tratamento da depressão; a passagem citada (p. 182) vem de uma sessão sobre o uso de meditação de mindfulness no tratamento da depressão.
[10] Para uma discussão recente das influências Budistas em Kabat-Zinn, ver Gilpin (2002, 232). Para além da “meditação de discernimento” do Theravada, Kabat-Zinn (1982, 34) e Kabat-Zinn, Lipworth e Burney (1985, 165) também citam o Soto Zen e práticas yógicas expressas nos escritos de Krishnamurti, Vimila Thakar e Nisargadatta Maharaj.
[11] Segal, Williams e Teasdale (2002, 325) referem-se ao livro de Goldstein e Kornfield, Seeking the heart of wisdom: the path of insight meditation.
[12] Kabat-Zinn (1994, 4): citado, por exemplo, por Segal, Williams e Teasdale (2002, 40).
[13] As 147, 405: para uma discussão mais completa do termo apilapanata ver Gethin (2001, 38-39).
[14] Cf. Analayo (2003, 48).
[15] Para uma discussão de mindfulness no contexto de samatha ver Kuan (2008, 58-80).
[16] Ver também Cousins (1996).
[17] Encontramos “o caminho único e exclusivo” (Rhys Davids 1910, 327); “este é o único caminho” (Soma 1967, 1) e “Há este caminho exclusivamente” (Horner 1954, 71)
[18] D II 83; III 101; S V 108, 160–1; A III 387; V 195; Nett 94; ver Gethin (2001, 58–9, 169, 172, 258).