Shauna L. Shapiro, Linda E. Carlson, John A. Astin e Benedict Freeman
Resumo
Recentemente, o construto psicológico mindfulness tem recebido uma grande quantidade de atenção. A maioria das pesquisas dá foco à estudos clínicos para a avaliação da eficácia de intervenções baseadas em mindfulness. Esta linha de pesquisa gerou um banco de dados promissor, sugerindo que as intervenções baseadas em mindfulness são efetivas para o tratamento tanto de sintomas físicos como psíquicos. No entanto, uma direção igualmente importante para as pesquisas futuras é a investigação de questões concernentes aos mecanismos de ação subjacentes às intervenções baseadas em mindfulness. Este artigo teórico propõe um modelo de mindfulness, em um esforço de elucidar mecanismos potenciais para explicar como mindfulness nos afeta positivamente. Potenciais implicações e direções futuras para o estudo empírico de mecanismos envolvidos em mindfulness são abordados.
Palavras-chave: mindfulness; meditação; mecanismos; repercepção; intenção; atenção
Recentemente, o construto psicológico mindfulness tem recebido uma grande quantidade de atenção, e foi até mesmo proposto enquanto um fator comum à todas as escolas de psicoterapia (Martin, 1997). Mindfulness tem suas raízes nas tradições contemplativas orientais e é mais frequentemente associada com a prática formal de meditação “mindfulness”. De fato, mindfulness é entendida por alguns como o “coração” da meditação budista (Kabat-Zinn, 2003; Thera, 1962). Mindfulness, porém, é mais do que meditação – é um “estado intrínseco de consciência”, que envolve o reconhecimento consciente por um sujeito da experiência de momento a momento (Brown & Ryan, 2003). A prática de meditação, então, é apenas um “andaime” usado para desenvolver este estado ou habilidade de mindfulness (Kabat-Zinn, 2005). A intenção deste artigo é refinar a exploração deste estado em particular de mindfulness e explorar a seguinte questão: “O que exatamente é mindfulness e como ela funciona?”
No decorrer dos últimos 20 anos, a maior parte das pesquisas nesta área focou em estudos relativos à intervenções clínicas para avaliar a eficácia de intervenções baseadas em mindfulness, como o programa Mindfulness Based Stress Reduction [Redução do Estresse Baseado em Mindfulness] (MBSR) (Kabat-Zinn, 1990). Esta linha de pesquisa mirou primariamente na questão “As intervenções baseadas em mindfulness são eficazes?” . Estes estudos conduziram à dados promissores, sugestivos de que a MBSR é uma intervenção eficiente tanto para o tratamento de sintomas físicos como psíquicos (ver Baer 2003; Bishop 2002; Grossman, Niemann, Schmidt, & Walach, 2004). É evidente que esta linha de pesquisa é fundamental para validar mindfulness enquanto uma intervenção psicológica eficaz, e os experimentos clínicos controlados aplicados a diversas populações devem continuar acontecendo. Contudo, uma direção igualmente importante para as pesquisas futuras concerne a questão a seguir: “Como as intervenções baseadas em mindfulness realmente funcionam?”.
A investigação de questões relativas aos mecanismos de ação subjacentes às intervenções baseadas em mindfulness irão exigir duas linhas de inquérito distintas, porém complementares. O destrinchar dos estudos é necessário para separar e comparar os vários ingredientes ativos nas intervenções baseadas em mindfulness, como o contexto social, o relaxamento e os elementos cognitivo comportamentais. Uma segunda linha de inquérito seria o exame deste construto central – mindfulness propriamente – para determinar se o desenvolvimento de “mindfulness” é o que realmente conduz às mudanças positivas que temos observado. Este passo pode ser facilitado através do desenvolvimento recente de escalas de mensuração válidas e confiáveis de mindfulness (ver Baer, 2003; Bishop, 2002; Brown & Ryan, 2003— o KIMS), permitindo a mensuração de mindfulness para o uso em modelos estatísticos de meditação. Uma teoria testável quanto aos mecanismos envolvidos no processo de mindfulness é necessária para explicar se e como mindfulness nos transforma. O objetivo deste artigo é apresentar um esboço desta teoria, focando no construto “mindfulness” em si mesmo, e não no conjunto inteiro do MBSR e outras intervenções baseadas em mindfulness. Gostaríamos de enfatizar que este é um passo inicial, uma primeira tentativa de compreender o complexo e misterioso processo que é a mindfulness. Ademais, é “uma” teoria e não “a” teoria – é uma busca por um terreno comum no qual pode se fundar uma possível compreensão mais precisa dos mecanismos de ação primários envolvidos nas práticas de mindfulness que tem se tornado proeminente na psicologia e medicina comportamental contemporâneas. Nossa intenção, portanto, é abrir um campo de diálogo.
Como a mindfulness funciona? Nós propomos três componentes (axiomas) da mindfulness: (1) intenção; (2) atenção; e (3) atitude (IAA). Nós introduziremos, então, um meta-mecanismo de ação, a “repercepção” e discutiremos a significância desta transição de perspectivas em termos dos efeitos transformativos de mindfulness. Por fim, iremos sublinhar quatro potenciais mecanismos, potencialmente advindos da repercepção.
Um Modelo de Mindfulness
Os Axiomas. Em uma tentativa de desmembrar mindfulness até um construto simples e compreensível, nós refletimos sobre os componentes nucleares da prática, os blocos fundadores da mindfulness, e examinamos a literatura existente sobre o tópico. Uma definição frequentemente citada de mindfulness – “o prestar atenção de um modo específico; de propósito, no momento presente e sem análises ou julgamentos” (Kabat-Zinn, 1994, p. 4) – incorpora os três axiomas de mindfulness:
- “de propósito” que concerne a intenção,
- “prestar atenção” que concerne a atenção,
- “de um modo específico” que concerne atitude (qualidades em mindfulness).
Os axiomas são os blocos fundacionais a partir dos quais os outros elementos emergem. De uma compreensão de IAA, podemos deduzir como a mindfulness pode funcionar. Intenção, atenção e atitude não são processos ou fases separadas – são aspectos interligados em um processo único que é cíclico e ocorrem simultaneamente (ver Figura 1). Mindfulness é este processo de momento a momento.
Figura 1. Os três axiomas de mindfulness, Intenção, Atenção e Atitude não são estágios separados. Eles são aspectos interligados de um só processo cíclico e ocorrem simultaneamente. Mindfulness é este processo momento a momento.
Axioma I. Intenção
Quando a psicologia ocidental tentou extrair a essência da prática de mindfulness de suas raízes culturais e religiosas originais, nós perdemos, até certo ponto, o aspecto da intenção, que no Budismo era a iluminação e a compaixão para com todos os seres. Nos parece importante explicitamente retomar isto em nosso modelo (Shapiro & Schwartz, 2000). Conforme Kabat-Zinn “suas intenções estabelecem o cenário para o que é possível. Elas te relembram a todo instante porque você está praticando afinal de contas’ (p.32). E ele continua “Eu costumava acreditar que a prática de meditação era muito poderosa… que contanto que você fizesse tudo direitinho, você perceberia avanços e mudanças. Mas o tempo me ensinou que algum nível de perspectiva pessoal também é necessária” (p. 46, 1990). Esta perspectiva pessoal, ou intenção, é frequentemente dinâmica e envolvente (Freedman, 2005). Por exemplo, um empresário muito estressado pode começar a prática de mindfulness para reduzir a hipertensão. Conforme sua prática de mindfulness avança, porém, ele pode desenvolver a intenção adicional de relacionar-se mais gentilmente com sua esposa.
O papel da intenção na prática de meditação é exemplificado pelo estudo de Shapiro (1992), que explorou as intenções dos praticantes de meditação e descobriu que, conforme os meditantes continuam sua prática, suas intenções se alternam dentro de um contínuo que vai do autocontrole, passando pela autodescoberta e chegando então à autolibertação[1]. Adiante, o estudo constatou que os resultados se correlacionam com as intenções. Aqueles cujo objetivo era o autocontrole e o manejo do estresse, obtiveram autocontrole; aqueles cujo objetivo era a autodescoberta e o autoconhecimento, obtiveram autoconhecimento; e aqueles cujo objetivo era a autolibertação moveram-se nessa direção e na direção da ação compassiva. Estas descobertas correspondem à nossa definição de intenções enquanto elementos dinâmicos e envolventes, que permitem a transformação e desenvolvimento a partir do aprofundamento da prática, da consciência e do discernimento. A inclusão da intenção (i.e., porque o praticante pratica) enquanto um componente central da mindfulness é crucial para entender o processo como um todo, e este é um elemento frequentemente ignorado em outras definições contemporâneas (Bishop et al., 2004).
Axioma II. Atenção
Um segundo componente fundamental de mindfulness é a atenção. No contexto da prática de mindfulness, prestar atenção envolve observar as operações e experiência interna e externa de momento a momento. Isto é o que Husserl entende como “um retorno às coisas em si mesmas”, é dizer, uma suspensão de todas as maneiras de interpretar a experiência e um envolvimento na experiência em si, como ela se apresenta aqui e agora. Desta forma, o praticante aprende a se envolver nos conteúdos da consciência, momento a momento. A atenção foi considerada no campo da psicologia como um elemento crítico do processo curativo. Por exemplo, na terapia Gestalt é enfatizada a consciência do momento presente, e o seu fundador, Fritz Perls, afirmou que “atenção em e sobre si mesma é curativa”. A importância da atenção também pode ser encontrada na terapia cognitivo comportamental, que é baseada na capacidade de se envolver (i.e., observar) com os comportamentos internos e externos. No âmago da mindfulness, está a prática de prestar atenção.
A psicologia cognitiva explora muitos aspectos diferentes de habilidades de atenção, incluindo a capacidade de sustentar a atenção por longos períodos em um só objeto (vigilância ou atenção contínua, Parasuraman, 1998; Posner & Rothbart, 1992), a habilidade de alternar o foco da atenção entre objetos ou conjuntos mentais conforme a própria volição (alternância; Posner, 1980), e habilidade de inibir o processamento elaborativo secundário de pensamentos, emoções e sensações (inibição cognitiva; Williams, Mathews, & MacLeod, 1996). O controle da atenção conforme descrito neste axioma iria provavelmente resultar em um desenvolvimento nas três habilidades descritas acima.
Axioma III. Atitude
Como nós nos envolvemos também é essencial. As qualidades que o praticante traz à atenção também foram chamadas de fundações de atitude em mindfulness (Kabat-Zinn, 1990, Shapiro & Schwartz, 1999, 2000). Este axioma prevê que a atitude que o praticante sustenta ao aplicar atenção é essencial. É comum que mindfulness seja associada com atenção básica[2], mas a qualidade desta atenção nem sempre é explicitamente indicada. Todavia, as qualidades que o praticante agrega ao prestar atenção são cruciais. Por exemplo, a atenção pode ter uma qualidade gélida e crítica ou incluir “uma qualidade afetiva e compassiva… um sentido de abertura de coração, presença acolhedora e interesse” (Kabat-Zinn, 2003, p. 145). É útil observar que os caracteres japoneses que compõem a palavra mindfulness são compostos de duas figuras interativas: mente e coração (Santorelli, 1999). Portanto, talvez uma tradução mais adequada de “mindfulness” do japonês seja “atenção afetiva” (Shapiro & Schwartz, em preparo), que assinala a importância da inclusão de qualidades de “coração” na prática de atenção de mindfulness (ver Shapiro & Schwartz, 2000, para revisão).
Nós acreditamos que as pessoas podem aprender a se envolver em suas próprias experiências internas e externas, sem interpretação ou atribuição de valor, e praticar aceitação, gentileza e abertura mesmo quando o que está se passando no campo da experiência é adverso à crenças e expectativas fortemente enraizadas. No entanto, para isso, é essencial tornar a qualidade da atitude da atenção explícita. É importante que o praticante conscientemente se determine, por exemplo, “possa eu gerar gentileza, curiosidade e abertura em minha consciência, possa eu embeber a minha consciência destas e daquelas qualidades…”
Com o treino direcionado e intencional, o praticante se torna gradualmente mais capaz de gerar interesse diante de cada experiência e de permitir que as experiências se dissolvam (i.e. não se fixar as experiências). Através da geração intencional de atitudes de paciência, compaixão e não agressão para a prática da atenção, o praticante desenvolve a capacidade de suspender o movimento compulsivo na direção de experiências prazerosas e contrário à experiências aversivas. De fato, o envolvimento sem qualidades de coração na prática pode resultar em uma prática que julga e condena as experiências internas. Tal abordagem pode muito bem trazer consequências que são contrárias as intenções da prática; por exemplo, o cultivo de padrões de julgamento e esforço ao invés de equanimidade e aceitação.
Bishop et al. (2004) também propõe um componente relativo à atitude na definição operacional de mindfulness, chamado de orientação à experiência¸ que envolve curiosidade, não-agressão e aceitação.
Propondo “uma” teoria
Nossa proposta é que os três axiomas, IAA, são os componentes fundamentais (ou comportamentos internos, de uma perspectiva behaviorista) da mindfulness. Nós acreditamos que eles contemplam direta e indiretamente a grande variabilidade nas transformações observadas na prática de mindfulness. Fundando-se nestes comportamentos, nós propomos um modelo dos potenciais mecanismos de mindfulness que entende que a ação de intencionalmente (I) atender (A) com abertura e não-julgamento (A) conduz à uma transição significativa de perspectiva, que chamamos de repercepção. Nós entendemos que repercepção é um meta-mecanismo de ação, que circunda mecanismos diretos adicionais que conduzem à resultados e transformações positivas. Nós sublinhamos quatro destes mecanismos adicionais: (1) autorregulação, (2) clareza de valores, (3) flexibilidade cognitiva, emocional e comportamental e (4) exposição. Estas variáveis podem ser vistas tanto como mecanismos potenciais para outros resultados, como redução de sintomas psicológicos, ou como resultados em si mesmos. Ademais, este não é um trajeto linear; cada variável apoia e afeta as demais.
Repercepção enquanto um Meta Mecanismo
Através do processo de mindfulness, o praticante é capaz de se desidentificar dos conteúdos da consciência (i.e., os pensamentos) e observar sua experiência de momento a momento com maior clareza e objetividade. Nós chamamos esse processo de repercepção, uma vez que envolve uma transição de perspectiva. Ao invés de nos vermos submersos no drama de nossa narrativa pessoal ou história de vida, somos capazes de dar um passo atrás e simplesmente testemunha-las. Conforme Goleman “a primeira realização da ‘meditação’ é que os fenômenos contemplados são diferentes da mente que os contempla” (1980, p.146)
Repercepção é um conceito afim de outros conceitos psicológicos como descentralização (Safran & Segal, 1990), desautomatização (Doeikman, 1982; Safran & Segal, 1990) e desprendimento (Bohart, 1983). Por exemplo, Safran e Segal definem descentralização como a habilidade de “sair do fluxo da experiência imediata do sujeito, transformando, então, a própria natureza desta experiência” (117). Deikman descreve a desautomatização como “o desfazer dos processos automáticos que governam a percepção e a cognição.” (p.137). E, de acordo com Bohart (1983), desprendimento é o conjunto de processos interconectados de aquisição de “distância”, adoção de uma “atitude fenomenológica” e de amplitude de um “espaço de atenção” (ver Martin, 1997, para revisão). Todos estes conceitos compartilham, em seu âmago, de uma transição de perspectiva. Esta transição, acreditamos, é facilitada pela mindfulness – o processo de colocar a atenção intencionada no fluxo do momento presente com abertura e não-julgamento (IAA).
Repercepção enquanto um Processo de Desenvolvimento
A repercepção pode ser descrita como uma rotação na atividade consciente, na qual aquilo que previamente era um “sujeito” se torna um “objeto”. Esta troca de perspectiva (tornando o sujeito um objeto) foi considerada por psicólogos do desenvolvimento como um elemento chave no amadurecimento no decorrer da vida (Kegan, 1982). Portanto, se a repercepção é de fato um meta-mecanismo subjacente à mindfulness, então a prática de mindfulness é simplesmente uma continuação do processo de desenvolvimento natural de um ser humano, no qual é gerada uma capacidade crescente de estabelecer objetivamente a própria experiência interna.
Este desenvolvimento natural é ilustrado no exemplo clássico do aniversário da mãe, no qual o filho de oito anos presenteia com flores, enquanto o filho de três anos presenteia com o seu brinquedo favorito. Ainda que adequado a nível de desenvolvimento, o filho de três anos é circunscrito aos limites de sua própria perspectiva autocentrada (i.e. narcísica). Para ele, o mundo ainda é largamente “subjetivo”, isto é, uma extensão do seu “eu”. E, como resultado, ele não consegue diferenciar claramente os seus próprios desejos dos desejos dos outros. Porém, conforme ele se desenvolve, uma transição em sua perspectiva acontece de modo que há uma crescente capacidade de assumir a perspectiva do outro (e.g. “as necessidades da minha mãe são diferentes das minhas”), precisamente porque aquilo que previamente era um sujeito (identificação com a mãe) agora se tornou um objeto do qual ele compreendeu estar separado. Isto é o alvorecer da empatia – a consciência da mãe enquanto alguém separado, com suas próprias necessidades e desejos. Este exemplo demonstra que, conforme os indivíduos são capazes de transformar sua perspectiva para além do confinamento limitante e estreito de seus próprios pontos de referência pessoais, o desenvolvimento ocorre.
A Prática de Mindfulness Continua o Processo de Desenvolvimento
Esta transição de perspectiva, que chamamos de repercepção, naturalmente acontece no processo de desenvolvimento. Sugerimos, porém, que a prática de mindfulness continua e acelera esta transição. A repercepção, que é a capacidade crescente de sustentar objetividade com relação à experiência interna e externa, é, de muitas maneiras, o selo da prática de mindfulness. Através do processo de intencionalmente focar a atenção sem julgamentos no conteúdo da consciência, o praticante de mindfulness começa a fortalecer aquilo que Deikman chama de “o eu observador” (Deikman, 1982). Conforme somos capazes de observar o conteúdo da consciência, não estamos mais completamente imersos ou misturados a este conteúdo. Por exemplo, se temos condição de ver aquilo, nós não somos aquilo; i.e. nós precisamos, necessariamente, ser mais que aquilo. Seja aquilo dor, depressão ou medo, a repercepção nos permite nos desidentificar dos pensamentos, emoções e sensações corporais conforme elas surgem e simplesmente ser com estes fenômenos ao invés de ser definidos por eles (i.e. controlados, condicionados, determinados). Através da repercepção, nós nos damos conta de que “esta dor não sou eu”; “esta depressão não sou eu”; “estes pensamentos não são eu” como resultado de uma observação a partir desta meta-perspectiva.
A transição de perspectiva que estamos descrevendo é análoga ao nosso exemplo anterior da criança que com o tempo é capaz de ver a si mesma separada do mundo objetivo no qual ela estava anteriormente imiscuída. No entanto, no nosso caso, a desidentificação é do conteúdo da própria mente (e.g. pensamentos, sensações, identificações, memórias) e não do ambiente externo. Através da repercepção gerada com o cultivo de mindfulness, as histórias (e.g., sobre quem nós somos, do que gostamos ou desgostamos, nossas opiniões sobre os outros etc.) com as quais nos identificamos tão rigidamente se tornam simples “histórias”. Deste modo, há uma profunda transição na relação do praticante com seus pensamentos e emoções, e o resultado é uma maior clareza, perspectiva, objetividade e, em sentido último, equanimidade.
Este processo é similar ao conceito de defusão cognitiva sugerido por Hayes, Strosahl, e Wilson (1999), no qual a ênfase é transformar a relação com o pensamento ao invés de tentar alterar o conteúdo do pensamento. Conforme observado por Hayes, Strosahl e Wilson, conforme o sujeito fortalece sua capacidade de perceber plenamente ou testemunhar a atividade mental, há uma correspondente transição no entendimento e sentido do eu. O “eu” é percebido além de si próprio, ou desconstruído – i.e. ele é compreendido enquanto uma construção psicológica, um sistema cambiante de conceitos, imagens, sensações e crenças. Estes agregados, ou construtos, que eram reconhecidos enquanto amálgamas de um “eu” estável são eventualmente percebidos como impermanentes e efêmeros. Através da repercepção, nós não somente aprendemos a dar um passo atrás e observar os comentários internos sobre nossa vida e experiências, como também começamos a dar um passo atrás para testemunhar a “história” sobre quem e o que nós efetivamente somos. Através desta mudança de perspectiva, a identidade começa a transitar dos conteúdos da consciência para a consciência em si mesma. Hayes et al. (1999) descreve esta transição como do “eu como conteúdo” (aquilo que pode ser testemunhado e observado enquanto um objeto da consciência) para o “eu como contexto” (aquilo que está observando ou testemunhando – i.e. a consciência em si mesma). É esta transição de base que pode, em parte, ser responsável pelas transformações emergentes a partir da prática de mindfulness.
Repercepção vs. Desprendimento
A repercepção pode facilmente ser confundida com uma tentativa de desapegar-se da própria experiência; um distanciamento de si próprio a ponto da apatia ou embotamento. Contudo, esta compreensão está em oposição direta à experiência genuína de repercepção, que gera uma compreensão e intimidade profundas com aquilo que surge de momento a momento. A repercepção de fato gera uma maior distância, almejando uma maior clareza. E, não obstante, isto não se traduz enquanto desconexão ou desassociação. Do contrário, a repercepção simplesmente permite o sujeito experienciar profundamente cada evento da mente e do corpo sem identificação ou fixação permitindo “uma observação não conceitual, profunda e penetrante da natureza da mente e do mundo” (Kabat-Zinn, 146, 2003). Através deste processo, somos capazes de nos conectar mais intimamente com a experiência de momento a momento, permitindo-a surgir e dissipar-se naturalmente, com um senso de não fixação. Nós experienciamos aquilo que é ao invés de um comentário ou história sobre o que é. Portanto, a repercepção, neste modelo hipotético, não gera apatia ou indiferença, mas, do contrário, permite ao sujeito experimentar uma maior riqueza, textura e profundidade no momento a momento, o que Peters descreve como “desprendimento íntimo” (Peters, 2004)
Mecanismos Adicionais
A repercepção e a “transição de perspectiva” que ela promove pode conduzir a outros mecanismos adicionais, que, por sua vez, contribuem nos resultados positivos produzidos pela prática de mindfulness. Nós sublinhamos quatro: (1) autocontrole e autorregulação; (2) flexibilidade emocional, cognitiva e comportamental; (3) clareza de valores e (4) exposição. Inerentes à estes três mecanismos estão os três axiomas de intenção, atenção e atitude.
Autocontrole e autorregulação. Autorregulação é o processo pelo qual o sistema mantém estabilidade funcional e adaptabilidade à mudança. Autorregulação é baseada em ciclos de feedback. Conforme Shapiro e Schwartz (1999, 2000) tanto a intenção e a atenção funcionam para aprimorar estes ciclos de feedback e gerar saúde:
intenção >> atenção >> conexão >> regulação >> ordem >> saúde
O cultivo intencional de atenção não avaliativa conduz à conexão, que conduz à regulação e, por fim, à ordem e a saúde. Através do processo de repercepção somos capazes de nos envolver com a informação contida em cada instante. Ganhamos acesso à mais informação, mesmo àquela informação que antes poderia ser considerada muito desconfortável de examinar. Conforme Hayes, “a rejeição experiencial se torna menos automática e menos necessária” (2002, p.104). A partir deste processo a desregulação e subsequente adoecimento podem ser evitados. Ademais, a repercepção interrompe os hábitos inadequados automatizados. Nós nos tornamos menos controlados por emoções particulares e pensamentos emergentes, e somos menos suscetíveis à segui-los automaticamente obedecendo a padrões de hábito reativos. Por exemplo, se surge ansiedade, e nós nos identificamos muito profundamente com ela, haverá uma tendência a reagirmos à ansiedade sem habilidade e, por conseguinte, tentar regula-la com comportamentos tal qual beber, fumar e comer em excesso. A repercepção nos permite dar um passo atrás para encarar a ansiedade e percebe-la simples e claramente enquanto um estado emocional que surgiu e irá, no seu tempo, se dissipar. Portanto, este conhecimento da impermanência dos fenômenos mentais permite um maior nível de tolerância com estados internos desagradáveis.
Através do desenvolvimento desta capacidade de apreender à distância e testemunhar estados emocionais tais como a ansiedade, aumentamos nossos “níveis de liberdade” perante à estes estados, nos liberando efetivamente destes padrões de comportamento automatizados. Através da repercepção, nós não somos mais controlados por estados como a ansiedade ou o medo, mas, em contrapartida, somos capazes de usa-los enquanto informação. Nós somos capazes atender à emoção, e escolher como nos autorregular de maneiras que alimentem nossa saúde e bem-estar. Através de conscientemente (intenção) trazer ciência (atenção) e aceitação (atitude) para a experiência do momento presente, nós seremos capazes de melhor utilizar um escopo mais amplo e adaptativo de habilidades de relação. Uma sustentação preliminar para esta hipótese pode ser encontrada em um estudo de Brown e Ryan no qual eles demonstram que pessoas que atingiram uma marca mais elevada na escala de mensuração de mindfulness expressaram uma autorregulação de emoção e comportamento significativamente maior (Brown & Ryan, 2003).
Clareza de Valores. Repercepção também pode ser hábil para as pessoas reconhecerem aquilo que é significativo para elas e o que elas genuinamente valorizam. Muitas vezes nossos valores são condicionados pela família, cultura e sociedade e não temos claro aqueles valores que efetivamente motivam nossas escolhas na vida. Nós nos tornamos o valor ao invés daquele que observa o valor. Frequentemente somos empurrados de lá para cá por aquilo que acreditamos (baseado em condicionamentos culturais ou familiares), falhando na reflexão que pesa a verdadeira importância destas coisas no contexto de nossa própria vida. No entanto, quando somos capazes de nos separar dos nossos valores (observa-los) e refletir sobre eles com uma maior objetividade, temos a oportunidade de redescobrir e escolher valores que podem ser mais genuínos à nossa experiência. Em outras palavras, nos tornamos capazes de refletidamente [através da reflexão] escolher o que foi, de forma prévia, reflexivamente [por reflexo] adotado ou condicionado. A literatura sugere que o processamento automático muitas vezes restringe as considerações que seriam mais congruentes com as nossas verdadeiras necessidades e valores (Brown & Ryan, 2003; Ryan, Kuhl, & Deci, 1997). No entanto, uma consciência intencional e aberta pode nos ajudar a escolher comportamentos que sejam congruentes com nossas necessidades, interesses e valores (Brown & Ryan, 2003; Ryan & Deci, 2000). Um estudo recente descobriu que quando os sujeitos estão “agindo em mindfulness”, conforme atestado pela Mindful Attention Awareness Scale [Escala de Atenção Consciente em Mindfulness] (MAAS), os indivíduos agem de maneiras mais congruentes com seus valores e interesses mais íntimos.
Flexibilidade cognitiva, emocional e comportamental. A repercepção também facilita uma responsividade mais adaptativa e flexível ao ambiente, em contraste aos padrões reflexivos de reatividade que são resultantes da excessiva identificação com a experiência corrente. Se formos capazes de ver uma situação e nossas reações internas à ela com maior clareza, teremos condições de responder à ela com maior liberdade de escolha (i.e. de maneiras menos condicionadas e automatizadas). Conforme aponta Borkevec, a pesquisa em psicologia social e cognitiva demonstra que “crenças e expectativas pré-existentes podem distorcer o processamento de informação recém-adquirida” (2002, p. 78). Aprender a ver com clareza (e aprender, de maneira geral) depende desta habilidade de se desidentificar de padrões e crenças anteriores.
A repercepção facilita esta capacidade de observação dos comentários mentais sobre as experiências da vida. Nos possibilita perceber a situação tal qual ela é no momento em que acontece, e reagir de acordo, ao invés de nos adstringir à pensamentos, emoções e comportamentos reativos, engatilhados por hábitos anteriores de condicionamento e experiência. A repercepção oferece um outro posicionamento com o qual enxergar o momento presente. Por exemplo, quando estamos capturados na superfície do oceano e as ondas estão nos arrastando para lá e para cá, é difícil ver as coisas claramente. Porém, quando nós descendemos para mais fundo, penetrando além da superfície (o que é análogo à observar e se desidentificar do movimento de pensamentos e emoções), entramos em um espaço mais claro e tranquilo (o que Deikman (1982) chamou de o “eu observador” ou o que as tradições contemplativas chamam de “Testemunha”). Deste ponto, temos o ângulo privilegiado que nos permite enxergar o que quer que surja na superfície de maneira mais clara – podendo, então, responder com mais consciência e flexibilidade. A repercepção permite o desenvolvimento desta capacidade de observar nossa experiência interior sempre em movimento e, portanto, enxergar de modo mais claro o conteúdo da nossa mente e das nossas emoções, o que, por sua vez, alimenta uma flexibilidade cognitiva-comportamental mais ampla, com menos automatismos e reatividade.
Exposição. A literatura está repleta de evidências da eficácia da exposição no tratamento de uma variedade de desequilíbrios (Barlow & Craske, 2000). A repercepção – a capacidade de observar ou testemunhar imparcialmente o conteúdo da consciência – permite à pessoa experienciar mesmo fortes emoções com maior objetividade e menos reatividade. Esta capacidade serve como uma contenção à tendência habitual de rejeitar ou negar estados emocionais difíceis, o que geralmente amplifica a exposição à estes estados. Através desta exposição direta, o sujeito aprende que suas emoções, pensamentos e sensações corporais não são tão cogentes ou assustadoras. Através do envolvimento consciente com estados emocionais negativos, o sujeito aprende experiencial e fenomenologicamente que tais emoções não precisam ser temidas ou rejeitadas e que eventualmente elas irão se dissipar (Segal, Williams, & Teasdale, 2002). Esta experiência eventualmente conduz à “extinção de reações amedrontadas e rejeições antes desencadeadas por estes estímulos” (Baer, 2003). Goleman sugere que a meditação oferece uma “dessensibilização global”, conforme a consciência meditativa pode ser aplicada em todos os aspectos da experiência do sujeito (Goleman, 1971).
Bear oferece um exemplo deste processo com pacientes que sofrem de dores crônicas: “… exposição prolongada à sensações de dor crônica, na ausência de consequências catastróficas, pode gerar dessensibilização, com uma redução, com o passar do tempo, das reações emocionais desencadeadas pela dor física. Portanto, a prática de habilidades de mindfulness pode conduzir à uma habilidade de experienciar as sensações dolorosas sem reatividade excessiva” (Baer, 2003). De fato, uma das primeiras aplicações clínicas bem-sucedidas de mindfulness foi em um contexto de dor crônica (Kabat-Zinn, 1990). Outro exemplo de como a facilidade de exposição à estímulos internos pode ajudar terapeuticamente vem da literatura acerca de exposição interceptiva à sensações físicas em distúrbios de pânico. A repercepção permite ao sujeito explorar e tolerar uma gama mais ampla de pensamentos, emoções e sensações, o que pode gerar um impacto positivo em um número de condições debilitantes.
Construindo com Base em Modelos Anteriores
Outros teóricos desenvolveram modelos quanto ao papel da atenção e da meta-cognição no desenvolvimento e manutenção de desequilíbrios mentais, por exemplo, o modelo Self-Regulatory Executive Function [Função Executiva Auto-Reguladora] (S-REF) de Wells (Myers & Wells, 2005; Wells, 1999) e o modelo da Diferential Activation Hypothesis [Hipótese da Ativação Diferencial] (DAH) de Teasdale (Sheppard & Teasdale, 1996; Lau, Segal, & Williams, 2004; Teasdale, et al., 2002).
Em específico, Wells descreve uma síndrome cognitiva caracterizada pela ampliação da atenção e foco sobre si mesmo, com monitoramento constante de ameaças, processos ruminantes e crenças disfuncionais. Estes elementos são mensurados no Questionário de Metacognição [Metacognitions Questionnaire] (Cartwright-Hatton & Wells, 1997; Wells & Cartwright-Hatton, 2004). Wells e seus colegas demonstraram que as metacognições disfuncionais são associadas com desequilíbrios e sintomas incluindo psicose, transtorno de ansiedade generalizado, sintomas obsessivo-compulsivos, hipocondria e transtorno de estresse pós-traumático. O modelo S-REF enfatiza a importância da atenção direcionada a si próprio no aumento potencial de ansiedade, a partir do focar da atenção em sensações internas associadas à experiência de ansiedade. Este foco interior pode gerar medos de perder o controle, medos dos próprios sintomas de ansiedade, uma consciência preenchida por insatisfação com o eu, e atividade cognitiva negativa (Wells, 1990). Wells sugere que focalizar a atenção externamente pode ajudar pessoas com desequilíbrios de ansiedade, ao invés de focar internamente como seria feito no treino em mindfulness. Sua intervenção consiste em um monitoramento externo da atenção e uma transição de foco de atenção a nível auditivo.
Ao contrário do modelo IAA que temos descrito, o modelo S-REF de terapia aplica as habilidades de atenção no foco, transição e divisão da atenção externamente, ao invés de internamente. Um experimento empírico óbvio seria comparar diretamente a eficácia dos tratamentos baseados no modelo IAA de mindfulness com o modelo S-REF em pacientes com transtornos de ansiedade.
Outro modelo que enfatiza a atenção é a teoria DAH de Teasdale, que descreve a vulnerabilidade à recaída depressiva a partir da ativação de cognições disfuncionais negativas, muitas das quais podem ser comparadas às metacognições disfuncionais descritas por Wells. Este modelo de recaída à depressão afirma que humores negativos temporários evocam estes padrões de pensamentos negativos, que podem espiralar e engatilhar uma recaída. Este grupo desenvolveu uma intervenção cunhada Mindfulness Based Cognitive Therapy [Terapia Cognitiva Baseada em Mindfulness] (MBCT), focando na ideia de se “descentralizar” do torvelinho de pensamentos negativos automáticos, associados com humores negativos, um conceito muito similar à repercepção. Neste modelo, a prática de mindfulness permite às pessoas se tornarem conscientes dos pensamentos e emoções negativas que podem desencadear uma potencial recaída, relacionando-se com eles de uma maneira diferente. Os participantes aprendem, a partir da prática de mindfulness, a se desengajar do processo mental ruminante, observando os pensamentos enquanto simples pensamentos, ampliando assim a consciência metacognitiva. Neste ângulo, o objetivo não é o conteúdo dos pensamentos propriamente, mas a relação do indivíduo com o processo do pensamento. Conforme a terminologia de Wells, através da prática de mindfulness a metacognição faz o trânsito da avaliação dos pensamentos enquanto pessoalizados e perigosos para a observação dos pensamentos de modo impessoal, como parte de um espetáculo itinerante, de uma perspectiva descentralizada.
O modelo IAA não contradiz nenhum destes modelos; de fato, a riqueza dos modelos S-REF e DAH ajuda a elucidar a maneira pela qual a atenção assume um papel importante em conduzir aos efeitos positivos da prática de mindfulness em um contexto de saúde mental. De fato, o componente ‘atenção’ do modelo IAA poderia ser testado usando o Questionário de Metacognição em participantes dos programas MBSR, investigando as mudanças que ocorrem no decorrer do treino em mindfulness. Isto poderia determinar se uma transição na consciência metacognitiva está realmente ocorrendo conforme postulado.
Ainda que o IAA não seja contraditório a estes dois modelos, ele é distinto deles. IAA enfatiza um modelo tri-axiomático, em oposição a um modelo puramente atencional. IAA define mindfulness como um estado envolvendo simultaneamente a emergência de uma intenção em particular, de atenção e atitude. Os modelos DAH e S-REF não discutem a intenção especificamente. Ademais, ainda que o modelo DAH mencione a atitude “amigável” perante a própria experiência, o modelo IAA torna o componente atitudinal da mindfulness mais explícito e essencial. IAA pode ser encarado como uma expansão dos modelos acima; uma tentativa de continuar o processo de desenvolvimento de um modelo teórico de mindfulness.
Sugestões para pesquisas futuras
Em suma, nós afirmamos que o estado de mindfulness surge quando a tríade IAA é simultaneamente cultivada. Através deste processo, ocorre o fenômeno da repercepção, que facilita a transição de perspectiva. Esta transição, acreditamos, é central à transformação e mudança ocasionadas pela prática de mindfulness. Nossa hipótese é que múltiplos mecanismos podem ser facilitados por esta transição, incluindo (1) autocontrole ou autorregulação; (2) clareza de valores; (3) flexibilidade cognitivo-comportamental; e (4) exposição. Pesquisas futuras em mindfulness poderiam começar a partir do desenvolvimento de uma mensuração da repercepção, e examinar se a transição de perspectiva ocorre a partir de intervenções baseadas em mindfulness e se está relacionada à resultados de bem-estar.
Ademais, será importante determinar as veredas pelas quais as mudanças acontecem. Nós propomos quatro mecanismos potenciais. Pesquisas futuras poderiam examinar se qualquer um destes mecanismos propostos de fato são relevantes nas significativas mudanças observadas. Modelos conectando a prática de mindfulness à resultados de interesse como a redução de sintomas psicopatológicos e o cultivo de qualidades psicológicas positivas podem ser hábeis na investigação do papel dos mecanismos propostos acima a partir do uso de testes estatísticos de meditação e de efeitos moderadores. O uso de concepções longitudinais de treino em mindfulness permitiria um esclarecimento das veredas de causalidade entre prática e resultado. Grandes amostragens permitiriam uma investigação simultânea de diversos caminhos e mecanismos possíveis, somados ao controle de efeitos de outros fatores que também podem ser importantes no cultivo de mindfulness. Um passo importante nas pesquisas nesta direção seria a elaboração de escalas de medição confiáveis não apenas para o conceito de mindfulness, mas também para os outros fatores propostos, de autorregulação, flexibilidade, clareza e exposição. Escalas consistentes estão disponíveis na literatura para alguns destes construtos, mas não para todos (ver Bishop et al., 2004; Brown & Ryan, 2003).
Meditação e Moderação
Modelos estatísticos de meditação e moderação podem ser testados para determinar se qualquer um destes três axiomas pode ser considerado nas mudanças de resultado, ou se as intervenções são efetivas de maneira distinta para grupos de pessoas de contextos distintos. Por exemplo, para testar a meditação de atenção usando o modelo de Baron e Kenny (Baron & Kenny, 1986), se uma relação é estabelecida entre uma intervenção de treino em mindfulness e o desenvolvimento de resultados positivos diante de sintomas de estresse, três condições precisam estar presentes para determinar a meditação: (1) a variável inicial (frequência no programa) está associada com o resultado (redução de estresse); (2) a variável inicial (frequência no programa) está correlacionada com a variável mediadora (atenção aprimorada); (3) a variável mediadora (atenção) afeta a variável resultante. Isto é estabelecido através da adição da variável inicial e da mediadora em uma equação de regressão ou modelo de equação estrutural, e pela demonstração de que a mediadora está correlacionada com as resultantes, depois do controle para os efeitos da variável inicial. A relação entre a variável inicial e a resultante pode ser parcial ou totalmente mediada. Em um modelo integralmente mediado, a relação entre a frequência no programa e o resultado de estresse diminuído declina para um nível insignificante na equação quando o mediador das habilidades atencionais é acrescido. A mediação parcial acontece quando o coeficiente entre a variável inicial e a resultante diminui, mas ainda explica a variação em resultado, conquanto que o mediador também explica uma porção da variação. Este tipo de análise pode ser feita com construtos latentes utilizando a modelagem de equação estrutural, ou com variáveis mensuradas usando regressão múltipla, e pode ser muito benéfico para pesquisa futura acerca da determinação de modelos de mindfulness.
Em contraste com a meditação, um efeito moderado acontece quando a variável moderadora muda completamente a relação causal entre variável inicial (frequência no programa) e o resultado (sintomas de estresse). Este costuma ser o caso com variáveis moderadoras fixas como idade, gênero e etnia. No caso da moderação, a variável inicial geralmente é aleatória, e, portanto, não há correlação entre variável inicial e moderador. Um exemplo clássico é que a intervenção (treino em mindfulness) pode ser moderada por gênero (mais eficaz para mulheres do que para homens). É improvável que a participação no treinamento em mindfulness seja correlacionada com gênero, uma vez que as pessoas seriam aleatoriamente alocadas à grupos de tratamento e ambos os gêneros seriam igualmente representados nestes grupos. A principal distinção entre moderação e mediação é que a mediação é uma tentativa de estabelecer mecanismos pelos quais uma variável está afetando a outra, conquanto a moderação é a observação das diferenças na relação entre a participação nos grupos e os resultados baseados em variáveis pré-existentes.
O uso mais provável destes modelos na investigação dos construtos IAA deve ser a de testes de efeitos meditativos de intenção, atenção e atitude entre treino em mindfulness e resultados. Por exemplo, avanços no resultado da autocompaixão podem ser mediados por uma atitude de não-julgamento, de modo que os participantes do programa que falharem no desenvolvimento de uma atitude de não-julgamento deverão apresentar pouca alteração em autocompaixão e empatia, conquanto que mudanças mais expressivas podem ser associadas com a aplicação de uma atitude mais aberta e sem julgamentos. Do mesmo modo, uma intenção explícita de aprimorar a espiritualidade através do treino em mindfulness pode mediar o efeito do treinamento em questão de espiritualidade.
Um efeito moderacional pode ser encontrado se características de base de certas pessoas afetarem sua habilidade de se beneficiar do treino em mindfulness. Por exemplo, pessoas com transtorno obsessivo compulsivo podem descobrir que as técnicas de treino em mindfulness exacerbam certos comportamentos compulsivos ao invés de apaziguá-los. Se este for o caso, um diagnóstico de TOC seria uma variável moderadora na relação entre a participação no programa e o resultado no nível de ansiedade. Outras características da personalidade, como a repressão emocional, também podem ser variáveis moderadoras entre o treino em mindfulness e resultados específicos.
Conclusão
A investigação da mindfulness ainda está amadurecendo e exige grande sensibilidade e um variado espectro de lentes e ângulos teóricos e metodológicos para iluminar a riqueza e complexidade deste fenômeno. Nós procuramos oferecer uma primeira formulação de um modelo para descrever como a mindfulness pode estar alimentando transformação e mudança. Este é claramente um modelo preliminar, e é meramente “um” modelo e não “o” modelo. Existem inúmeras outras possibilidades e veredas que podem perpassar este misterioso e complexo fenômeno. O próximo passo é desenvolver hipóteses testáveis que podem ser empiricamente examinadas. Destes resultados novas hipóteses podem ser desenvolvidas e, por conseguinte, teorias mais elaboradas.
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Notas:
[1] Autolibertação ou autoliberação diz respeito à experiência de transcendência (i.e. tornar-se livre ou desidentificar-se) da experiência de ser um “eu” separado.
[2] Nota do Revisor: atenção básica, do inglês bare attention, é também traduzida como atenção simples ou atenção pura.