QUEM SOU EU?
Na antiga história dos cegos e do elefante[1], um rei reunia um grupo de homens que haviam nascido cegos, mandava que examinassem um elefante e depois descrevessem o que encontrassem. Um deles apalpou a cabeça, enquanto outros tocavam individualmente nas presas, na tromba, nas patas e no lombo. Dependendo da parte do elefante que cada um havia tocado, os cegos, um a um, foram descrevendo o elefante como sendo parecido com um pote, uma relha de arado, uma corda, uma pilastra e um muro. Ao ouvirem os diferentes relatos que faziam entre si, começaram de imediato a discutir sobre quem tinha razão e a brigar, recorrendo alguns à violência.
É a história que me vem à lembrança quando reflito sobre a variedade de respostas, sempre conflitantes, dadas para a antiquíssima pergunta: quem sou eu? Teólogos, filósofos e cientistas vêm tentando há séculos respondê-la, mas só raramente chegaram a um acordo. Por quê? Será que o viés particular de cada um embaçou o quadro? Será que suas respostas relativas, suas fontes preferidas de consulta e métodos de investigação criaram uma barreira à compreensão?
Nós, seres humanos, já tivemos bastante tempo para refletir sobre nossa identidade. A Bíblia diz que o homem foi criado à imagem de Deus. Se é verdade, isto deve ser uma coisa boa, pois a Bíblia insiste que Deus é bom e que sua criação é boa. Mas há muitos judeus e cristãos que enfatizam a natureza má do homem e nossa necessidade de olhar além de nós mesmos – para Deus ou Jesus – em busca de salvação para corrupções inatas. Existe abundância evidente através de toda a história e no mundo de hoje para sustentar a afirmação de que os seres humanos são essencialmente maus. Não há, porém, como negar que existe também muita coisa boa no mundo. Então o que é mais básico, o bem ou o mal? Ou somos simplesmente uma mistura dos dois? Os teólogos vêm debatendo há séculos essas questões, sem que haja alguma conclusão à vista.
Os biólogos nos dizem que os seres humanos evoluíram lentamente, por um processo de seleção natural, dos primeiros primatas. De uma geração a outra, as espécies que estão agora vivas se adaptaram gradualmente a seus ambientes em transformação para poderem continuar a sobreviver e procriar. Se um indivíduo sobrevive tempo suficiente para ter descendentes, é um sucesso evolutivo. Se não, independentemente do que fez no decorrer de sua vida, é um fracasso biológico. Assim, do ponto de vista de um biólogo, seres humanos são animais levando a vida sob a influência de seus genes, instintos e emoções com o objetivo primeiro de sobreviver e procriar. As palavras “bom” e “mau” nada significam em termos científicos, exceto até o ponto em que se referem à nossa capacidade de permanecermos vivos e fazermos bebês.
Quando os psiquiatras, começando com Sigmund Freud, trataram da questão da natureza humana, também enfatizaram nossas pulsões primitivas para o sexo e a dominação dos outros. Seus pontos de vista se articulam intimamemente com os dos biólogos e psicólogos evolucionistas: embora nosso pensamento consciente possa parecer bastante civilizado e às vezes até mesmo altruísta, nossos impulsos subconscientes são sombrios, egoístas e brutais. Mas os cientistas cognitivos não estão completamente de acordo com relação a este ponto. Nos últimos dez anos, surgiu a chamada “psicologia positiva”, que se concentra no florescimento humano e na virtude. É um campo novo de pesquisa científica, ainda não respaldado por grande e rigorosa evidência empírica. Mas esses psicólogos estão levantando questões importantes e expandindo os horizontes de sua área, que tem se concentrado nos últimos sessenta anos quase exclusivamente nos mentalmente enfermos, nos que sofreram dano cerebral e nas pessoas com saúde mental normal. Só recentemente eles começaram a explorar os mais altos potenciais da mente humana.
Durante boa parte da primeira metade do século XX, a psicologia acadêmica nos Estados Unidos foi dominada pelo behaviorismo, que insistia em estudar a natureza humana através unicamente do exame do comportamento animal e humano. Os cientistas behavioristas faziam questão de evitar a introspecção – a exploração direta de nossas mentes e experiência pessoal. Depois, nos anos 60, quando o behaviorismo começou a declinar, surgiu a psicologia cognitiva, parecendo levar mais a sério a experiência subjetiva. Mas foi também a época em que a tecnologia de computação estava em alta e logo os pesquisadores da área estavam comparando a mente a um computador.
Durante as últimas décadas do século XX, avanços na tecnologia permitiram que as ciências do cérebro progredissem como nunca e, desde então, muitos neurocientistas chegaram à conclusão de que a mente é realmente o cérebro ou que a mente é o que o cérebro faz. Alegam que toda a nossa experiência pessoal consiste de funções cerebrais, influenciadas pelo resto do corpo, pelo DNA, dieta, comportamento e meio ambiente. Em última análise, os seres humanos são robôs biologicamente programados, o que implica que, no essencial, não temos mais livre-arbítrio que quaisquer outros autômatos. Nossos programas são simplesmente mais complexos que aqueles das máquinas feitas pelo homem. Mas nem todos os neurocientistas concordam. Alguns estão agora explorando os efeitos dos pensamentos e do comportamento no cérebro. Como geralmente consideram a mente uma propriedade emergente do cérebro, o que estão dizendo é que certas funções do cérebro influenciam outras funções. Por ora, contudo, não há um consenso claro sobre as implicações da pesquisa conduzida até aqui.
Talvez alguém tenha reparado que, em todas essas abordagens, algo crucial foi deixado de lado: nossa experiência pessoal do que é ser uma criatura humana. Contemplativos no Oriente e no Ocidente, porém, exploraram a natureza da mente, da consciência e a identidade humana, e creio que iluminaram dimensões da realidade que continuam em grande parte inexploradas no mundo moderno. A religião se tornou tão dependente da doutrina, e a ciência, tão materialista, que métodos contemplativos de investigação costumam ser esquecidos. No mundo moderno, a meditação, quando praticada, é muitas vezes usada apenas para aliviar o stress e superar outros problemas físicos e psicológicos. Mas a meditação pode também oferecer algumas das percepções mais profundas que somos capazes de alcançar sobre a natureza e a identidade humanas.
Levando-se em consideração o senso individual de quem somos, a maioria de nós se identifica fortemente com os papéis que desempenha na vida cotidiana, por exemplo, pai ou mãe, cônjuge, filho, estudante ou pessoa de uma certa profissão. Tais papéis são importantes e nos definem em nossas inter-relações na sociedade. Mas fora nossas relações específicas com outras pessoas e os tipos de atividades de que nos ocupamos com regularidade, o que é deixado de lado? Quem somos nós quando ficamos em silêncio em casa, nada fazendo além de estarmos presentes?
Vamos abordar esta questão de forma prática nos lançando a uma espécie de expedição para as fronteiras da mente. Gosto particularmente da palavra “expedição” devido às suas raízes. Ela deriva da palavra latina expeditio, composta da sílaba ex, que tem a conotação de “sair” ou “soltar-se”, e ped, que significa “pés”. Assim, “expedição” tem a conotação de nos livrar de um lugar onde nossos “pés” estão atolados. No tipo de expedição que tenho em mente, primeiro reconhecemos que estamos atolados em velhos sulcos que não levam a parte alguma e então damos passos para nos libertarmos deles.
Estamos vivendo num mundo frenético em que a maioria de nós pensa que, se não está fazendo alguma coisa, mesmo que seja ver televisão, está perdendo tempo. Estamos tão presos às nossas atividades, relacionamentos, pensamentos e emoções que achamos que isso é que há para nós. Vamos tirar uma pequena folga. Procure um lugar tranquilo em sua casa e uma poltrona confortável para se sentar por 10 minutos. Sem pensar deliberadamente em nada, veja se consegue simplesmente ter consciência do seu corpo e mente. Fique em silêncio e, sem reagir, deixe as sensações do corpo, os pensamentos e as emoções chegarem à sua consciência.
Tique-taque, tique-taque …
Você consegue de fato ficar mentalmente em silêncio quando quer ou sua mente vomita obsessivamente um pensamento após o outro? Quando os pensamentos surgem, consegue simplesmente observá-los ou se vê compulsivamente preso neles, a atenção aprisionada em cada imagem mental e desejo? Está sua mente realmente sob seu controle ou o está controlando, fazendo-o confundir seus pensamentos sobre o mundo com a experiência imediata do seu corpo, mente e ambiente? Uma mente calma e clara pode ser de grande utilidade, mas turbulenta e fora de controle pode causar grande dano a nós mesmos e aos outros. Assim, a primeira tarefa no caminho da contemplação é aproveitar o enorme poder da mente e fazê-lo prestar bons serviços.
AS ORIGENS DA CONTEMPLAÇÃO
A contemplação no Ocidente
Durante todo este livro, vou me referir a teorias e práticas de contemplação que se originaram essencialmente da antiga filosofia grega, do cristianismo e do budismo. Como veremos, embora cada uma dessas tradições tenha características únicas, há semelhanças importantes. A palavra “contemplação” deriva do latim contemplatio, que corresponde ao grego theoria. Ambos os termos se referem a um total zelo por revelar, esclarecer e tornar manifesta a natureza da realidade. Hoje em dia, “contemplação” geralmente significa pensar sobre alguma coisa.[2] Mas os sentidos originais de “contemplação” e “teoria” estavam relacionados a uma percepção direta da realidade não pelos cinco sentidos físicos ou pelo pensamento, mas pela percepção mental. Por exemplo, ao observar diretamente os próprios pensamentos, imagens mentais e sonhos, você está usando a percepção mental, que pode ser refinada e estendida através da prática da contemplação. Como então a meditação se relaciona com a contemplação? A palavra sânscrita bhavana corresponde à nossa palavra “meditação” e significa literalmente “cultivo”. Meditar significa cultivar uma compreensão da realidade, um senso de genuíno bem-estar e virtude. Assim, meditação é um processo gradual de treinamento da mente e leva ao objetivo da contemplação, onde se ganha discernimento sobre a natureza da realidade.
Na tradição grega, a prática da meditação pode ser encontrada pelo menos já em Pitágoras (c. 582-507 a.C.) Ele foi influenciado pela religião órfica e seus mistérios, que se concentravam em libertar a mente das impurezas e revelar seus recursos mais profundos. Pitágoras foi o primeiro a se chamar de filósofo, “alguém que ama a sabedoria”, rejeitando humildemente o termo sophos ou “homem sábio”. E em suas longas viagens através da região mediterrânea e além, ele de fato procurou sabedoria, compreensão.
Em cerca de 525 a.C., após uma busca de muitos anos, Pitágoras mudou-se da ilha grega de Samos para a cidade de Crotone, no sul da Itália. Lá fundou uma sociedade filosófica religiosa, onde formava homens e mulheres para levar uma vida bem equilibrada de corpo e de espírito vivendo numa comunidade de confiante comunismo. Para purificar as almas, exigia-se que mantivessem elevados padrões éticos, praticassem exercícios físicos, mantivessem o celibato, seguissem uma dieta vegetariana e se empenhassem em demorados períodos de silêncio e em vários tipos de abstinência. A educação formal consistia de uma formação em música, matemática, astronomia e meditação. Como nenhum dos textos de Pitágoras sobreviveu, sabemos pouco sobre os diferentes tipos de meditação que ele e seus seguidores ensinaram e praticaram.
Pitágoras é talvez mais célebre pelo teorema de Pitágoras, que diz respeito aos comprimentos relativos dos três lados de um triângulo retângulo. Como o teorema já fora formulado no século VIII a.C., na Índia, é possível que, em suas muitas viagens, Pitágoras tenha absorvido este e outros módulos de conhecimento, especialmente os relativos à meditação, de fontes indianas. Ele é igualmente bem conhecido por sua crença na reencarnação, segundo a qual a alma é imortal e renasce em corpos tanto humanos quanto animais. Segundo a lenda, Pitágoras alegava ser capaz de recordar até vinte de suas vidas passadas e das vidas passadas de outras pessoas. Mas não temos meios de saber se suas supostas memórias eram precisas, e se eram, se ele nasceu com esta capacidade ou alcançou através da meditação. Uma das citações atribuídas a Pitágoras é: “Aprenda a ficar em silêncio … Deixe sua mente calma ouvir e absorver”, e um interesse básico desta tradição meditativa era estar atento à “harmonia das esferas”, o que combinava temas da música, matemática e astronomia. Ele acreditava que a vida mais elevada é aquela devotada à contemplação apaixonada, solidária, que produz uma espécie de êxtase saído da percepção direta da natureza da realidade.
As possíveis origens indianas do teorema de Pitágoras e sua crença na reencarnação têm levado alguns historiadores a concluir que Pitágoras pode ter sido influenciado por ideias da Índia, transmitidas através da Pérsia e do Egito. Devemos a maior parte do que sabemos sobre os pitagóricos a Aristóteles (384-322 a.C.). Segundo Aristóteles, os pitagóricos foram os primeiros a promover o estudo da matemática e para eles todas as coisas da natureza eram modeladas segundo números. Realmente os números eram as primeiras coisas no conjunto da natureza e tudo permeavam. Eles concebiam os números em termos de diferentes configurações de unidades no espaço e, com base nisto, concluíram que os elementos dos números eram os elementos de todas as coisas. Segundo Aristóteles, “os pitagóricos também acreditam num único tipo de número – o matemático; dizem, porém, que dele se formam não substâncias distintas, mas substâncias sensíveis. Pois constroem o Universo inteiro de números – não, porém, números consistindo de unidades abstratas; eles supõem que as unidades tenham magnitude espacial”.
Foi dito que Pitágoras teria admirado o judaísmo, no qual Deus é visto como o único governante supremo do Universo, sobre o qual impõe suas leis divinas. Segundo o historiador judeu Flávio Josefo (37-c.100 d.C.) a seita judaica chamada de essênios também admirava os ensinamentos de Pitágoras, pois seguia um modo de vida que tinha por modelo a sociedade fundada por ele. Membros desta seita viveram na Judeia de meados do século II a.C. até o ano 70 d.C., quando foram destruídos pelos romanos. Como os primeiros pitagóricos, os essênios se isolavam da sociedade dominante, viviam de forma muito frugal, compartilhavam a propriedade comunal e acreditavam que Deus seria mais bem cultuado se purificassem a mente em vez de lhe oferecerem sacrifícios de animais. Embora o celibato não fizesse parte da tradição hebraica, os essênios se esquivavam do casamento (que representava uma ameaça para a vida comunitária), mas não o condenavam por princípio. Praticavam banhos rituais em água fria, ou batismo, e acreditavam num ministério da cura em que o poder vinha através das mãos. Criticando severamente as normas éticas das sociedades judaica e romana de seu tempo, acreditavam que o reino de Deus viria em breve e seria anunciado por uma guerra cataclísmica entre o justo e o pecador.
Desde o século XIX, estudiosos especularam sobre a possível ligação entre os essênios e João Batista, bem como entre eles e Jesus, o que sugeriria que práticas e crenças pitagóricas influenciaram a primitiva tradição cristã. Na verdade, o estilo de vida e os ensinamentos de João Batista eram notavelmente semelhantes aos dos essênios. Levando uma vida celibatária, usando roupas feitas de pelo de camelo e sobrevivendo com uma dieta ascética de gafanhotos e mel silvestre, ele pregava no deserto da Judeia: “Arrependei-vos, pois o reino dos céus está próximo”. Como os essênios, batizava outras pessoas como uma limpeza ritual de suas impurezas e pecados. Quando abordado por fariseus e saduceus, foi extremamente crítico, chamando-os de raça de víboras.
Destacando-se entre os judeus que procuraram João para serem batizados, estava Jesus de Nazaré, que o colocou acima de todos os profetas anteriores a ele, dizendo: “Entre os que nasceram de mulher, não surgiu ninguém maior do que João Batista; contudo, mesmo o menor no reino dos céus é maior que ele”. Já que foi batizado por João, podemos presumir que Jesus aceitava seus ensinamentos e, imediatamente após o batismo, Jesus partiu para o deserto, onde jejuou e rezou por quarenta dias, durante os quais superou as tentações do demônio. Quando emergiu dessa solidão no deserto, começou a pregar uma mensagem comum aos essênios e a João Batista: “Arrependei-vos, porque o reino dos céus está próximo”.
Mesmo se Flávio Josefo estava correto ao afirmar que os essênios seguiam um modo de vida ensinado aos gregos por Pitágoras, é difícil saber até que ponto os essênios adotaram crenças pitagóricas, como a reencarnação, embora sem dúvida alguns também acreditassem na imortalidade da alma. É notável, porém, que Jesus tenha declarado que João Batista era o profeta Elias. O que aparentemente não sobressaltou seus ouvintes, pois muitos judeus já acreditavam que os profetas podiam reencarnar ou serem “ressucitados”. Segundo a Bíblia, enquanto ainda vivo, Elias foi apanhado por uma carruagem de fogo com cavalos de fogo e levado para o céu num redemoinho. O Novo Testamento declarou que João estava imbuído do “espírito e poder” de Elias, o que poderia facilmente ser interpretado como indicação de que era uma reencarnação de Elias. Mas os teólogos têm interpretado esses trechos de diferentes maneiras.
Ensinamentos dos pitagóricos, por meio de Sócrates (c. 470-399 a.C.) e Platão (c. 427-347 a.C.), foram finalmente assimilados pela escola filosófica do neoplatonismo, que foi fundada por Plotino (c. 205-270). Nascido no Egito, Plotino mergulhou durante nove anos no pensamento grego em Alexandria, associando-se depois a uma expedição à Pérsia, na esperança de estudar os escritos filosóficos dos persas e indianos. A aventura militar, porém, fracassou e ele nunca chegou a seu destino. Plotino acreditava que era possível atingir a perfeição e a felicidade humanas neste mundo, o que poderia ser alcançado através da prática da contemplação. O objetivo era alcançar a união em êxtase com o Todo, que ele ensinava ser a realidade última, transcendendo todas as palavras e conceitos. As Enéadas, sua famosa obra, foi compilada, organizada e editada por Porfírio (c. 232-305 – também conhecido por sua Vida de Pitágoras), que relatou que Plotino alcançou essa união divida quatro vezes durante os seis anos em que estudou com ele. A contemplação é o “fio” singular que uni o Todo a todas as coisas criadas, que emergem dele, e pela prática da contemplação a pessoa passa a conhecer a fonte do seu próprio ser. Como Pitágoras e Sócrates, Plotino acreditava que as almas individuais reencarnavam, experimentando os resultados de seus comportamentos ético e antiético de uma existência para outra até finalmente ficarem totalmente purificadas, encontrando a mais completa felicidade nascida da contemplação.
No decorrer dos séculos, os escritos de Plotino inspiraram cristãos, judeus, muçulmanos, bem como filósofos e contemplativos gnósticos, sendo Orígenes (c. 185-254) um dos pensadores mais influentes. Nascido em Alexandria, Orígenes foi considerado o maior teólogo cristão de seu tempo. Ele também acreditava que a alma evolui espiritualmente de uma existência para outra, até que finalmente avança para o conhecimento (gnosis) de Deus por meio da contemplação (theoria). Desde o século III, aproximadamente, os contemplativos cristãos começaram a se dedicar à vida solitária, meditativa, na parte egípcia do deserto do Saara. Muitos se refugiaram ali após fugir do caos e da perseguição do Império Romano. Esses primitivos eremitas do deserto, conhecidos como Padres do Deserto, formaram comunidades nas periferias de centros populacionais, longe o suficiente para ficar a salvo da vigilância imperial, mas ainda suficientemente perto para ter acesso à civilização.
Embora quase todos os primeiros Padres do Deserto fossem analfabetos, Evagrius do Ponto (345-399) foi um estudioso clássico de educação muito elevada e um dos primeiros Padres do Deserto a começar a registrar e sistematizar seus ensinamentos orais. Evagrius era um sólido defensor de Orígenes e adotou os pontos de vista sobre a reencarnação das almas humanas e sua perfeição final em união com Deus. Um de seus principais discípulos, João Cassiano (c. 360-433), adaptou as obras de Evagrius para seus estudantes ocidentais e fundou a abadia de São Vítor, um complexo com dois monastérios, um para homens e outro para mulheres, no sul da França. Foi uma das primeiras insitituições do gênero no Ocidente e serviu como modelo para o desensolvimento posterior da vida monacal cristã.
A Contemplação no Oriente
Os traços mais antigos de uma cultura meditativa no mundo se encontram na civilização do vale do Indo, que se estendia do que é hoje o Paquistão ao vale do Ganges, na Índia, e alcançou seu apogeu durante o período de 3000 a 2500 a.C. Foram preservados milhares de sinais dessa civilização, gravados em moldes de argila, contendo alguns dos mais antigos registros escritos no mundo. Alguns desses sinais descrevem yogues sentados em clássicas posturas meditativas.
É surpreendente o pequeno número de referências literárias à meditação antes da época de Gautama, o Buda (c.563-483 a.C.), que foi um contemporâneo de Pitágoras. Mas está claro que já havia uma tradição muito rica e diversificada de contemplação, na qual ele mergulhou assim que deixou o lar palaciano, aos 29 anos de idade. Dedicou-se a uma vida de busca contemplativa para escapar do ciclo de nascimento, morte e renascimento, portanto, a crença na reencarnação parece ter sido comum em seu tempo.
Seu primeiro instrutor de meditação foi Alara Kalama, que era versado em samadhi ou estado meditativo em que a atenção é retirada dos sentidos físicos, os pensamentos são acalmados e a pessoa experimenta uma extraordinária beatitude e serenidade. Desde que, segundo relatos budistas, o tipo de meditação que Kalama ensinava pode levar ao conhecimento direto, confiável, de vidas passadas, vemos que os meditadores avançados encaravam a reencarnação não como questão de crença religiosa, mas como verdade empiricamente verificável.
Segundo os primeiros registros budistas, Gautama rapidamente atingiu o samadhi extremamente sublime e refinado ensinado por Alara Kalama, em que sua mente penetrava numa dimensão informe da existência desprovida de todo o conteúdo, exceto uma experiência de puro nada. Mas isto não satisfez suas aspirações de liberação do ciclo da existência e ele saiu à procura de um contemplativo ainda mais perfeito chamado Uddaka Ramaputta, sob cuja orientação atingiu um samadhi ainda mais sutil. Mas Gautama reconheceu que apenas esses estados de absorção meditativa não o faziam atingir sua meta do “estado supremo de paz sublime” graças a um conhecimento da realidade como ela é. Pois ele descobriu que, após emergir da meditação e ingressar no mundo cotidiano, a pessoa continuaria sujeita ao sofrimento e a suas causas subjacentes. Quando reconheceu que atingir esses estados não chegava à raiz do problema, Gautama passou anos atormentando o corpo com práticas ascéticas, incluindo jejum. O objetivo era alcançar a libertação com uma espécie de domínio da mente sobre a matéria. O resultado final, porém, foi que o corpo começou a definhar, e as faculdades mentais ficaram prejudicadas. Ele então percebeu que atingir o samadhi não era o objetivo supremo, embora esses estados refinados de consciência pudessem ser usados para investigar, através da meditação, a natureza do sofrimento e suas causas.
Entre os grandes mestres religiosos de toda a história, o Buda é o único que desencoraja a crença de que algo é verdadeiro simplesmente porque muita gente diz que é ou porque está baseado numa tradição de longa data, na autoridade das escrituras, na voz corrente, na especulação ou na reverência por um mestre. Sem dúvida a pessoa deve, procurando fazer o melhor possível, testar através de sua própria experiência o que os outros defendem e julgar por si mesma. É evidente, então, que isto é precisamente o que Buda fez com relação às opiniões favoráveis à reencarnação que predominavam em sua época. Nos mais antigos registros da narrativa de sua conquista da iluminação, ele descreve como, com a mente concentrada, purificada, maleável e calma, alcançou o “conhecimento direto” da natureza da consciência e das raízes do sofrimento. Seu primeiro conhecimento direto foi o das circunstâncias específicas de suas muitas milhares de vidas anteriores no transcurso de inúmeras eras de contração e expansão do mundo. Seu segundo conhecimento direto foi a observação contemplativa da sucessão de vidas de outros seres, verificando as relações entre as ações e os efeitos à medida que eles se concluíam em vidas subsequentes. E o terceiro conhecimento direto na noite de sua iluminação foi a percepção das Quatro Nobres Verdades: “Tive conhecimento direto, como é realmente o conhecimento, de que ‘Isto é sofrimento’, de que ‘Isto é a origem do sofrimento’, de que ‘Isto é a cessação do sofrimento’ e de que ‘Isto é o caminho que leva à cessação do sofrimento’”. Foi neste ponto que Gautama se tornou um Buda, “alguém que despertou”, com a mente completamente liberta de todas as aflições e obscurecimentos. Nessa percepção do Nirvana, ele encontrou o estado supremo de paz sublime que estivera procurando e dedicou os restantes 45 anos de sua vida a encaminhar outras pessoas para tal liberdade do sofrimento. Por essa razão, passou a ser conhecido como o “Grande Médico”, que mostrava como atingir o verdadeiro bem-estar purificando a mente de aflições, cultivando a virtude e conquistando um discernimento contemplativo sobre a natureza da realidade.
Nesse exame muito breve das origens da meditação na filosofia grega, no cristianismo e no budismo, encontramos uma série de temas e percepções comuns. Mas a orientação da prática meditativa é diferente em cada tradição, assim como as interpretações da experiência contemplativa. Os pitagóricos acreditavam num Universo ordenado e, embora provavelmente aceitassem o clássico politeísmo grego, acreditavam numa divindade superior a todas as outras. Para eles, a meditação estava intimamente relacionada à música, à matemática e à astronomia. Para os cristãos, estava concentrada na união com o único Deus supremo e, para os budistas, que compartilhavam a crença indiana na existência de muitos deuses, a meditação atendia ao objetivo de alcançar a libertação do ciclo da existência. Mas no início e no desenvolvimento posterior de cada uma dessas tradições, é evidente que a meditação desempenhou um papel vital.
A Externalização Científica da Meditação
Embora a contemplação se encontre na raiz das religiões, da filosofia e da ciência ocidentais, ela praticamente não desempenha papel algum na ciência atual. Isso não é resultado de um declínio gradual, como no cristianismo, podendo mesmo remontar às origens da ciência moderna no século XVII. Nessa época, o mudo sobrenatural – consistindo de Deus e outras entidades espirituais, como o demônio e anjos, céu e inferno – devia ser aceito como base na autoridade da Bíblia. Os teólogos estavam encarregados de compreender este domínio da realidade e as opiniões deles eram aceitas como artigos de fé. A alma humana podia ser encarada como espiritual no sentido de que vinha de Deus e tinha livre-arbítrio, sendo independente do corpo e do ambiente físico. Mas era também natural no sentido de que governava o corpo e era influenciada pelos sentidos físicos. Assim, os aspectos espirituais da alma deviam ser aceitos como artigos de fé, na medida em que procediam da autoridade divina, e os aspectos naturais eram explicados por filósofos que confiavam principalmente em seus poderes de raciocínio. Os cientistas tinham a tarefa de compreender o terceiro domínio da realidade – o mundo externo da matéria e das forças naturais – com base em observações diretas e experimentos.
A origem da palavra “meditação” poder ser identificada na raiz verbal indo-europeia “med”, que significa “considerar” ou “medir”. Como vimos, no cristianismo primitivo, a meditação era um meio experiencial de adquirir discernimento direto, contemplativo, sobre a natureza da realidade. Mas na escolástica medieval e na filosofia moderna, a meditação foi reduzida a considerações racionais, introspectivas. Tendo em vista compreender o universo externo da matéria, a ciência elaborou suas próprias “meditações” sob a forma de medições de processos físicos que podem ser confirmadas por todos os observadores competentes.
Todos os grandes pioneiros da ciência no século XVII eram cristãos devotos e suas investigações sobre o mundo da natureza podem ser vistas como uma tentativa mística de fundir a compreensão do mundo natural por parte do homem com a compreensão de Deus. Os contemplativos cristãos desde a época de Agostinho tinham perseguido esse mesmo objetivo e presumido que ele não podia ser realizado nesta vida, apenas no céu. Quando, na Europa, a investigação contemplativa de olhar-voltado-para-dentro diminuiu, os cientistas conceberam novos métodos de investigação de olhar-voltado-para-fora, que, esperavam, pudesse levar à compreensão divina nesta vida.
Entre esses inovadores, nenhum foi mais influente que Galileu Galilei (1564-1642). Quando criança, Galileu visitou um monastério da ordem camaldulense, que combinava a vida solitária do eremita com a vida severa do monge. Foi atraído para esse estilo de vida e quis ingressar na ordem, mas não teria a permissão do pai, que não podia se dar ao luxo de alimentar no filho uma vocação religiosa que não gerasse renda. Obedecendo à vontade do pai, Galileu entrou na Universidade de Pisa para estudar medicina, mas logo se voltou para a matemática e a ciência. De um modo geral, desprezava a filosofia escolástica, que via como nada além de um conservadorismo arraigado, que desconfiava de ideias inovadoras e novos métodos de pesquisa.
Coube em grande parte a Galileu a responsabilidade de lançar as fundações do “método científico” para estudar o mundo material: observações sofisticadas, rigorosas, quantitativas de entidades físicas, combinadas com a análise matemática dos dados observados. A motivação por trás de sua pesquisa era compreender a natureza da criação de Deus da própria perspectiva de Deus, transcendendo as limitações e ilusões dos sentidos humanos. Isto podia ser feito, ele propôs, pelo uso do raciocínio matemático, pois acreditava que a matemática era a própria linguagem de Deus. Essa interpretação teísta do papel central da matemática na natureza fora defendida séculos antes pelos pitagóricos.
Embora Galileu deixasse de bom grado as questões sobrenaturais nas mãos da Igreja, insistia que o estudo científico do mundo natural tinha de prosseguir de forma livre e independente da autoridade da Bíblia e do pensamento grego. Ao dar esse passo revolucionário, reverteu a hierarquia escolástica medieval do conhecimento. A observação empírica, que os filósofos costumavam classificar como a forma mais baixa de conhecimento, foi elevada ao nível mais alto. A razão era importante para interpretar as descobertas empíricas e a autoridade da tradição só era aceita enquanto não fosse contestada pela observação rigorosa ou o raciocínio seguro. Que enorme mudança!
Galileu abandonou a ênfase aristotélica em compreender por que as coisas são do jeito que são e se concentrou em exaustivas observações e medidas de como os objetos celestes e terrestres se movem. Os filósofos escolásticos de sua época aceitavam de modo não crítico a visão de Aristóteles de que os corpos celestes eram inalteráveis e se moviam em círculos perfeitos, com a Terra no centro. Em 1609, Galileu criou um telescópio com o poder de mostrar imagens vinte vezes ampliadas e, com este novo instrumento, descobriu quatro luas de Júpiter (que giravam em torno de Júpiter, não da Terra), crateras na Lua, manchas solares (mostrando que os corpos celestes não eram imutáveis) e as fases de Vênus, indicando que ele girava em torno do Sol, não da Terra. Outros astrônomos com instrumentos inferiores se queixaram de não serem capazes de confirmar todas essas observações. Como resultado, alguns deles questionaram sua validade, enquanto outros chegaram a ponto de afirmar que eram ilusões de ótica criadas pelas lentes de Galileu.
Os astrônomos medievais estavam há muito familiarizados com a natureza enganosa das aparições de corpos celestes, especialmente quando se tratava do aparente movimento dos planetas. De acordo com o antigo pensamento grego, presumiam que a Lua, o Sol, os planetas e as estrelas giravam todos em círculos perfeitos ao redor da Terra. Durante uma mesma noite, viam-se os planetas movendo-se pelo céu de leste para oeste, mas se observados de uma noite para outra, eles geralmente pareciam se mover de oeste para leste contra as estrelas ao fundo. Ocasionalmente, no entanto, o movimento de um planeta pareceria reverter a direção e, durante um curto período, ele se moveria de leste para oeste contra as constelações do fundo. A reversão é conhecida como “movimento retrógrado”. Para explicar essas aparições enganosas de modo a fazê-las concordar com o pensamento grego, os primeiros astrônomos conceberam um complicado sistema abstrato de epiciclos, por meio do qual os planetas se moviam ao redor de pequenas trilhas circulares que, por sua vez, descreviam órbitas circulares mais largas ao redor da Terra. Este, eles acreditavam, era o movimento real, objetivo, dos planetas em contraste com as aparências falsas, subjetivas, de seu movimento retrógrado. Toda essa teoria estava baseada em falsos pressupostos e foi apenas com o uso do telescópio, concentrado nas aparições enganosas de corpos celestes, que a ciência da astronomia pôde progredir.
Quando Galileu apresentou pela primeira vez as descobertas feitas através de seu telescópio, provando a teoria de Copérnico de que a Terra girava ao redor do Sol, não foi a Igreja que o atacou. De fato, padres e bispos jesuítas e dominicanos ficaram fascinados com as ovas perspectivas que o telescópio abria e organizaram encontros opulentos com Galileu em Roma, celebrando suas novas descobertas. Padre Clavius, que era o líder indiscutível da astronomia jesuíta, a princípio não aceitou as descobertas. Mas assim que obtiveram seus próprios telescópios, ele e seus colegas confirmaram todas as observações de Galileu. Quem finalmente colocou a Igreja em conflito com Galileu foram os consultores acadêmicos leigos, que insistiram que Roma tinha o dever de deter Galileu, pois se o deixassem fora de controle ele destruiria todo o sistema universitário ao minar as crenças aristotélicas em que estava baseado. Esses filósofos escolásticos recusavam-se até mesmo a olhar por um telescópio, pois insistiam de forma inflexível que tudo que fosse visto através das lentes que contrariasse suas crenças tinha de ser ilusão de ótica.
As descobertas de Galileu usando o telescópio transformaram a controvérsia sobre os movimentos relativos do Sol e da Terra. De debate intelectual, passou a ser uma questão que podia ser decidida com base em evidências. Ele se orgulhava de ter sido o primeiro a construir um telescópio adequado e a apontá-lo para o céu, mas valorizava mais que tudo seu gênio em fazer observações cuidadosas de uma ampla gama de entidades físicas,compreendendo o comportamento de suas partes e descrevendo estas em termos de proporções matemáticas.
Enquanto Galileu é encarado como o pai da ciência moderna pelo papel que desempenhou na criação do método científico de investigação, o filósofo, matemático e cientista francês René Descartes (1596-1650) foi denominado pai da filosofia moderna por apresentar a moldura conceitual dentro da qual a pesquisa científica seria conduzida. Depois de obter um diploma em direito conforme o desejo do pai, Descartes abandonou a vida acadêmica e decidiu não procurar nenhum outro conhecimento além daquele que pudesse encontrar dentro de si mesmo ou, então, no “grande livro do mundo”. Aos vinte anos de idade, enquanto viajava pela Alemanha pensando em usar a matemática para resolver problemas de física, teve uma visão num sonho através da qual “descobriu os alicerces de uma ciência maravilhosa”. Isto se tornou um ponto essencial na experiência do jovem Descartes e ele dedicou o resto de sua vida a investigar a relação entre a matemática e a natureza.
A base da ciência de Descartes foi a proposição de que os objetos têm dois tipos de propriedades. Como substâncias que se estendem no espaço, todos os objetos físicos têm comprimento, altura, largura, amplitude, localização, duração e número, e, por meio dessas propriedades primárias, podem ser compreendidos em termos matemáticos. Os objetos têm ainda o que é chamado de propriedades secundárias, como cor, som, gosto, cheiro, calor e frio. Ele acreditava que essas propriedades não existem objetivamente nos objetos físicos em si, sendo antes propriedades de nossa percepção do mundo ao redor. Quando “clara e nitidamente percebidas”, ele concluía que as propriedades objetivas, primárias, podiam ser conhecidas sem sombra de dúvida. Ao contrário, comentou Descartes, quando se tratava de propriedades secundárias, “elas são encontradas em meu pensamento de forma tão obscura e confusa que fico sem saber sequer se são verdadeiras ou falsas, apenas aparentes, isto é, se as ideias que faço dessas propriedades são realmente ideias de coisas reais ou se representam para mim apenas [ideias] que não podem existir”.
Descartes sugeriu que a distinção entre propriedades primárias e secundárias da matéria é necessária para evitar que tiremos falsas conclusões sobre a natureza da realidade. Ele estava refutando, especificamente, a suposição comumente conhecida como “realismo ingênuo”, que todos nós trazemos da infância – a ideia de que cores, cheiros, gostos e sensações táteis existem no mundo objetivo, independentemente de nossas percepções. Concluía: “Pode ser demonstrado que peso, cor e todas as outras propriedades semelhantes que são percebidas na matéria física podem ser retiradas dela deixando intacta a matéria em si. De onde se segue que sua natureza não depende de nenhuma delas”. O mundo objetivo, na visão de Descartes, é realmente sem cor, sem odor, sem sabor e assim por diante. A refutação do realismo ingênuo está de acordo com todas as descobertas científicas subsequentes e continua sendo parte integrante da visão científica da natureza como um todo. Embora se acredite que partículas elementares, átomos, moléculas, campos eletromagnéticos e ondas existiam independentemente de qualquer observador, as imagens visuais que percebemos do mundo ao nosso redor não estão lá. Como o neurologista Antonio Damasio comenta: “Não há imagem do objeto sendo transferida do objeto para a retina e da retina para o cérebro”. Tais imagens, não importa o que sejam, existem apenas em nossa mente.
A palavra “ciência” se origina da raiz verbal indo-europeia sker, que significa “cortar” ou “separar” e, sob a orientação de Descartes, a ciência moderna começou a traçar uma fronteira nítida, separando o mundo objetivo do universo físico dos mundos subjetivos da experiência pessoal dos indivíduos. Ao fazer esta separação absoluta entre o mundo físico objetivo e o mundo subjetivo da mente, Descartes, com efeito, passou o mundo material para cientistas e deixou o mundo subjetivo para filósofos e teólogos. Desde o tempo de Galileu e Descartes, gerações de físicos e biólogos seguiram essa distinção e conseguiram extraordinário progresso na medida e na compreensão de realidades objetivas, físicas, quantificáveis. De fato, nas últimas décadas do século XIX, muitos físicos acreditavam que sua compreensão do mundo físico estava completa e perfeita em todos os aspectos principais. Mas a compreensão filosófica das realidades mentais – incluindo pensamentos, imagens mentais, emoções, desejos, dramas e a própria consciência – não fizera progresso comparável. Os cientistas tinham descoberto métodos eficientes com os quais “meditar” ou medir coisas físicas objetivas, mas os filósofos não tinham conseguido conceber métodos para observar de maneira rigorosa eventos mentais subjetivos.
William James (1842-1919), o grande pioneiro americano da psicologia, sentiu que a compreensão científica da mente em seu tempo estava praticamente tão pouco desenvolvida quanto a física antes de Galileu. Desde 1600, ele observou, os cientistas tinham concebido métodos para investigar o mundo externo que podiam ser submetidos à análise matemática. Desse modo, questões há muito discutidas por filósofos foram finalmente resolvidas pelos métodos empíricos da ciência. Quanto mais a ciência progredia, menor o número de problemas nas mãos dos filósofos.
A carreira de William James fornece numerosos exemplos que, se seguidos seriamente, poderiam ter levado a psicologia ocidental a uma compreensão mais completa e equilibrada da mente do que a que temos hoje. Depois de receber, na juventude, educação nos Estados Unidos e na Europa, em 1861 James se matriculou na Laurence Scientific School, em Harvard e, três anos mais tarde, ingressou na Faculdade de Medicina de Harvard, onde se graduou em 1869. Em parte devido ao determinismo biológico em que foi doutrinado durante os estudos médicos, começou a experimentar surtos repetidos de depressão severa, que mais tarde descreveu como quedas numa profunda crise … de espiritualidade, de ser, de sentido e de vontade. Mas em 1870, teve a revelação de que o livre-arbítrio, afinal, não era ilusão e que podia usar sua vontade para se livrar da depressão. Concluiu que não era um mero autômato governado pelos processos biológicos em seu corpo e fez do acreditar no livre-arbítrio seu primeiro ato de livre-arbítrio.
James começou a ensinar anatomia e fisiologia em Harvard em 1873. Dois mais tarde passou a ensinar psicologia e criou em Harvard o primeiro laboratório para estudo científico da mente. Definiu psicologia como “a Ciência da Vida Mental, tanto de seus fenômenos quanto de suas condições. Os fenômenos são as coisas que chamamos de sensações, desejos, cognições, raciocínios, decisões e assim por diante”. Enquanto os físicos estudavam coisas físicas que eram acessíveis a todos os observadores competentes, os psicólogos deviam examinar processos mentais subjetivamente experimentados e as relações deles com seus objetos, com o cérebro e com o resto do mundo. Mas experiências metais são coisas particulares e inacessíveis à observação direta pelas ferramentas da ciência. Então James propôs que a psicologia deveria usar fundamentalmente a introspecção para estudar os processos mentais. Contudo, a observação direta dos estados e processos mentais da pessoa, ele argumentou, deve ser complementada pela pesquisa comparativa, como o estudo do comportamento animal e a ciência experimental do cérebro.
Enquanto James se concentrava na observação introspectiva da experiência mental consciente, o neurologista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) ficou bem conhecido pelas teorias sobre a mente inconsciente. Seu trabalho pioneiro foi crucial para a criação da escola psicanalítica de psicologia, na qual o terapeuta procura descobrir conexões entre os componentes inconscientes dos processos mentais dos pacientes. Com base nos relatos verbais feitos pelos pacientes de suas experiências subjetivas no estado desperto e no sonho, Freud procurou sondar os mecanismos ocultos da mente.
No início do século XX, nem os psicólogos acadêmicos nem os psicanalistas tinham conseguido elaborar métodos rigorosos de observar diretamente os processos mentais. Assim, após não mais de trinta anos, a introspecção foi em grande parte abandonada como meio de investigar de forma científica a mente. Houve duas razões principais para isso. Uma delas era que pesquisadores, trabalhando em laboratórios diferentes, tinham muita dificuldade em reproduzir as descobertas uns dos outros, pois os pacientes que praticavam a introspecção tendiam a “perceber” o que os pesquisadores esperavam que experimentassem. Não esqueçamos que também os psicólogos não conseguiram um progresso significativo no refino de sua própria introspecção e não a praticavam muito, pelo menos no exercício de sua condição profissional. Sem dúvida faziam seus pacientes experimentais examinar as próprias mentes, mas sem um treinamento sólido, rigoroso, que os capacitasse a fazer observações precisas, confiáveis. Assim, embora os cientistas usassem explicitamente a introspecção em suas pesquisas, deixavam-na nas mãos de amadores. A introspecção nunca se desenvolveu além do nível de uma “psicologia folclórica”.
A segunda razão fundamental pela qual a introspecção foi rejeitada pela comunidade científica foi que ela ia contra o veio da pesquisa científica nos trezentos anos anteriores, que tinha se concentrado de forma consistente em realidades objetivas, físicas, quantitativas. Nas décadas iniciais do século XX, as ciências naturais tinham se mostrado tão bem-sucedidas – especialmente quando comparadas com a religião e a filosofia – que um número crescente de pessoas identificavam o mundo natural com o mundo físico. Em outras palavras, as únicas coisas que consideravam real eram as coisas que os cientistas podiam medir: isto é, entidades e processos físicos. Qualquer outra coisa era considerada “sobrenatural” e, portanto, não existente – ou pelo menos irrelevante para a pesquisa científica.
Com a rejeição do uso científico da introspecção, a psicologia acadêmica no mundo de língua inglesa deslocou-se para o behaviorismo, que fez tudo que podia para eliminar referências a estados e processos subjetivamente experimentados. John B Watson (1878-1958), um dos pioneiros do behaviorismo americano, declarou que a psicologia não devia ser mais a ciência da vida mental, como William James a tinha definido. Como “um ramo experimental puramente objetivo da ciência natural”, dizia ele, a psicologia “jamais deveria usar os termos consciência, estados mentais, mente, essência, introspectivamente verificável, imaginário e assim por diante”. Este tabu contra a experiência subjetiva foi motivado, em parte, pela associação da mente (ou alma) com religião e, em parte, pela natureza aparentemente não física dos eventos mentais. A desconfiança dos cientistas diante de qualquer coisa religiosa é bastante compreensível, pois para eles a religião exige uma crença inquestionável na autoridade. A ciência, pelo contrário, coloca sua prioridade básica no conhecimento experimental.
Eis o atrito. Pois a evidência experimental, para ser encarada como evidência empírica, tinha de ser verificável – acessível a inúmeros observadores competentes. Mas os processos mentais só podem ser observados internamente. Não podem ser detectados por nenhum observador externo ou por nenhum dos instrumentos da ciência, que são concebidos para medir todos os tipos conhecidos de realidades físicas. Consequentemente, os psicólogos se encontraram num dilema: deviam perseverar no espírito do empirismo, que estivera na raiz do progresso científico nos últimos trezentos anos? Ou deviam se colar à observação de objetos físicos, externos, o domínio da realidade onde a ciência desfrutara tanto progresso desde a época de Galileu? Optaram pelo segundo foco, mais estreito. Os behavioristas preferiram estudar o comportamento humano e não quaisquer misteriosas entidades interiores, espirituais, mentais, que não pareciam ter propriedades físicas próprias.
O behaviorismo, pelo menos como foi desenvolvido na psicologia da pesquisa acadêmica, preocupava-se basicamente em encontrar meios eficientes de compreender a mente humana por meio do comportamento, em vez de inferir conclusões sobre a natureza real dos processos mentais. Era como tentar compreender a anatomia e a fisiologia humanas sem jamais executar autópsias – que eram proibidas na medicina medieval. A maioria dos behavioristas tinha bastante consciência dos estados mentais, mas achava que a psicologia se desenvolveria mais depressa e com menos digressões se deixasse a introspecção de lado por algum tempo. Contudo, behavioristas mais radicais, começando com Watson, deram um passo adicional ao declarar que os processos mentais, em geral, e a consciência, em particular, não existiam absolutamente – simplesmente porque não tinham propriedades físicas! Era um caso nítido de rejeição, em que um compromisso ideológico com o materialismo invalidava a evidência experimental que não estivesse de acordo com uma crença. Pior ainda, os behavioristas identificaram o comportamento com os próprios processos psicológicos. Os robôs exibem um comportamento, mas não estão conscientes e não têm experiências subjetivas. Os homens também exibem um comportamento; por mais escrupulosa, no entanto, que seja sua avaliação, o comportamento físico por si mesmo não fornece evidência sequer da existência das realidades mentais que todos nós vivenciamos. A afirmação de que a experiência subjetiva pode ser reduzida a um comportamento objetivo não passa de desonestidade intelectual ou de profunda confusão.
Em 1960, as limitações de ignorar os processos mentais estavam se tornando cada vez mais nítidas para os psicólogos acadêmicos. O novo campo da psicologia cognitiva começou a encarar a experiência subjetiva com maior seriedade e, desde a ascensão da neurociência cognitiva nas últimas décadas do século XX, muita atenção tem sido dada aos processos cerebrais relacionados com a experiência subjetiva. Foi feito grande progresso na identificação de partes e funções específicas do cérebro que são necessárias para a visão, para os demais sentidos físicos e para os processos mentais específicos, como a memória, a emoção e a imaginação. Trata-se de um meio perfeitamente legítimo de investigar a experiência mental indiretamente, pois se apoia no vigor de quatrocentos anos de pesquisa científica sobre as realidades físicas. Mas a verdadeira natureza dos processos mentais em si permanece tão misteriosa quanto antes.
Que ligação existe entre os processos mentais e cerebrais – entre nossas experiências subjetivas e nosso “hardware” físico? É puramente causal, com os processos cerebrais gerando experiência subjetiva? Ou os processos mentais e neurais são realmente a mesma coisa, observada do interior e do exterior? Christof Koch, que trabalha com pesquisa de ponta sobre correlatos neurais da consciência, comenta a questão: “As características dos estados cerebrais e dos estados fenomenais parecem muito diferentes para serem completamente redutíveis uma à outra. Desconfio que a conexão é mais complexa do que tradicionalmente se imagina. Por ora, é melhor manter a mente aberta com relação a este assunto e se concentrar em identificar os correlatos da consciência no cérebro”. Como neurocientista com experiência profissional, naturalmente ele se apoia naquilo que pratica, a saber, o estudo do cérebro. Mas nunca se aprendeu nada sobre a verdadeira natureza da experiência subjetiva estudando apenas o cérebro. Quando observamos objetivamente estados cerebrais, eles não exibem nenhuma das características dos estados mentais, e quando observamos subjetivamente estados mentais, eles não exibem nenhuma das características da atividade cerebral.
Muitos neurocientistas acreditam que os processos mentais se originam no cérebro como propriedades emergentes. Uma propriedade emergente surge de uma grande configuração de componentes, mas não está presente em nenhuma dessas partes individualmente. Por exemplo, uma molécula individual de H2O em temperatura ambiente não é fluida. Mas um grande conjunto de moléculas de água mostra a propriedade da fluidez. A fluidez é uma propriedade física bem-compreendida, que é facilmente medida com os instrumentos da tecnologia. Da mesma maneira, muitas propriedades emergentes de entidades físicas são elas próprias físicas e podem ser medidas, como fluxo sanguíneo e mudanças elétricas e químicas dentro do cérebro. Os processos mentais, ao contrário, não possuem propriedades físicas e não podem ser, sob qualquer forma, objetivamente medidos. Já que são radicalmente diferentes de quaisquer outras propriedades emergentes que surgem no mundo físico, parece haver pouca justificativa para encará-los como propriedades emergentes de qualquer entidade física.
Alguns neurocientistas, contudo, negligenciam esses problemas e talvez inadvertidamente deixem a questão obscura ao declarar simplesmente que os processos mentais são a mesma coisa que suas bases neurais. É uma hipótese plausível, mas nunca foi demonstrada de modo científico. Portanto, é intelectualmente desonesto defender isto como conclusão científica; no presente não é nada mais que uma opinião não verificada. Existe aqui um perigo de verdadeira degeneração da ciência em pseudociência. Uma das características da pseudociência é que ela tenta provar que uma hipótese é verdadeira, em vez de investigar se é verdadeira. A pressuposição de que a hipótese é verdadeira e só precisa ser posta à prova substitui a abertura mental que caracteriza o método científico. Assim, muitos neurocientistas adotaram exatamente essa abordagem pseudocientífica tentando provar que as experiências subjetivas podem ser plenamente compreendidas sob a ótica de processos físicos dentro do cérebro. Lembremos que, na Europa do século XVII, era crença generalizada que a alma tinha atributos tanto sobrenaturais quanto naturais. Em sua insistência em compreender a mente humana como uma entidade puramente natural, os cientistas a trataram como se ela devesse ser física, embora ela não apresente atributos físicos e não possa ser detectada por qualquer instrumento físico. É um problema central para todo o estudo científico da mente, que ainda tem de ser resolvido.
Os psicólogos continuam a estudar a mente indiretamente, questionando pessoas conscientes e observando seu comportamento. Desse modo, investigam diretamente os efeitos físicos de processos mentais. E os neurocientistas estudam a mente indiretamente, explorando as basees neurais da experiência subjetiva. Dessa maneira, investigam diretamente os correlatos físicos de ventos mentais, que podem ser causas ou efeitos. As disciplinas combinadas da psicologia e da neurociência são agora conhecidas como ciência cognitiva. Se os pesquisadores deste campo limitassem suas pesquisas ao estudo do comportamento e do cérebro, não teriam sequer a ideia da existência da experiência subjetiva. O único meio de os experimentadores poderem ter certeza de que existem estados mentais é experimentá-los em si mesmos. Isso prova o valor da insistência de William James de que a introspecção seja plenamente incorporada ao estudo científico da mente.
Os cientistas cognitivos nunca conceberam quaisquer meios sofisticados para examinar os próprios eventos mentais. Deixam tais observações para pessoas pagas (geralmente estudantes ainda não formados) que não têm formação profissional na observação ou descrição de processos mentais. Deixando a introspecção na mão de amadores, os cientistas fazem com que a observação direta da mente continue o nível da psicologia folclórica. Com relação a isso, coloquemos a ciência cognitiva no contexto das outras ciências naturais. Físicos experimentais são profissionalmente treinados para observar processos físicos, e biólogos são profissionalmente treinados para observar processos biológicos. Os cientistas cognitivos assumiram o desafio de compreender os processos mentais, mas ao contrário de todos os outros cientistas naturais não recebem formação profissional na observação das realidades que compreendem sua área de pesquisa.
Isso não significa que as ciências cognitivas não tenham aprendido muito sobre a mente. De fato, psicólogos e neurocientistas aprenderam muito sobre uma ampla gama de processos mentais (alguns deles inacessíveis à introspecção) e seus correspondentes estados cerebrais. E têm havido muitas aplicações valiosas de seu conhecimento no diagnóstico e tratamento das doenças mentais. Os neurocientistas têm substituído medidas objetivas do cérebro por reflexões sobre seus sobre seus correspondentes processos mentais subjetivos. Essa abordagem tem produzido grandes insights sobre as bases neurais da mente, mas muito pouca compreensão sobre a verdadeira natureza e origens da consciência e de todos os outros processos mentais subjetivos.
Durante o século passado, o fato de os cientistas cognitivos não terem conseguido conceber nenhum meio rigoroso de observar diretamente realidades mentais levou-os à conclusão similar de que a introspecção não pode ser usada como método científico de investigação. Essa crença, que continua a ser amplamente sustentada por psicólogos e neurocientistas, ainda justifica a exploração da mente por meio de comportamento e atividade cerebral. Mas ao minar o valor da introspecção, ela implicitamente apoia a suposição de que os processos mentais realmente nada mais são que processos cerebrais encarados de uma perspectiva subjetiva. A implicação é que processos cerebrais são reais, mas processos mentais são ilusórios.
Agora, porém, com a facilidade de transporte e comunicação globais, temos um acesso muito maior que em qualquer outra época a toda as civilizações do mundo. Em consequência, um número rapidamente crescente de cientistas cognitivos estão mostrando forte interesse pessoal e profissional em tradições contemplativas anteriormente desconhecidas, juntamente com aquelas desenvolvidas no ocidente. Por conseguinte, a secular rejeição científica da meditação pode em breve ser coisa do passado.
Estudos Científicos da Meditação
São nossos estados mentais e comportamento determinados inteiramente por influências físicas, como atividade cerebral e genes, ou podemos melhorar nossa sensação de bem-estar por meio de nossos próprios esforços, incluindo a meditação? Essa é uma questão fundamental, subjacente a todos os estudos científicos da meditação. Lembremos que William James entrou numa depressão profunda, suicida, parcialmente em reação à crença – que era predominante em meados do século XIX – de que os seres humanos são meros fantoches jogados de um lado para o outro por processos bioquímicos do corpo. Ele conseguiu sair dessa situação ao reconhecer que a evidência científica que apoia essa hipótese reducionista não era conclusiva. A pesquisa dos últimos poucos anos tornou esta visão robótica da natureza humana ainda mais duvidosa.
Um dos campos mais fascinantes da pesquisa neurocientífica nos dias de hoje diz respeito à neuroplasticidade ou à capacidade que têm os neurônios do cérebro de mudar em resposta à experiência. O que isso significa para nós, em nossa vida diária, é que podemos realmente mudar o cérebro alterando nossos pensamentos, atitudes e comportamento. A pesquisa aponta o cérebro como um orgão em mudança contínua, que responde estruturalmente não apenas às demandas do ambiente externo, mas também a estados gerados internamente, incluindo aspectos da consciência. Num experimento pioneiro, neurocientistas da Faculdade de Medicina de Harvard fizeram um grupo de voluntários praticarem diariamente um exercício de piano durante uma semana, enquanto outro grupo apenas imaginava que estivesse fazendo o exercício, mexendo os dedos e tocando as notas mentalmente. No final da semana, o córtex motor, que é a região do cérebro que controla os movimentos dos dedos, tinha se tornado mais largo nos verdadeiros executantes, o que era o resultado esperado – mas a mesma mudança tinha também ocorrido no cérebro dos executantes virtuais! Imaginar que tinham tocado piano levara a mudanças físicas mensuráveis no cérebro. Era demais para a velha máxima: “Não é real, está só na sua cabeça!”.
Pesquisadores do Salk Institute for Biological Studies em La Jolla, Califórnia, mostraram que o cérebro adulto pode mudar sua estrutura, suas conexões e, portanto, suas funções – uma aptidão para a mudança que os cientistas durante muito tempo acreditaram que era perdida no início da infância. Isso significa que podemos voluntariamente transformar nossa mente e cérebro ao longo de toda a nossa existência, escolhendo nosso ambiente, nosso estilo de vida e os tipos de atividade mental em que nos ocupamos. Um dos modos de a neuroplasticidade ocorrer é através da neurogênese ou geração de novas células cerebrais e, ainda mais importante, de novas conexões de sinapses. Um cérebro humano saudável contém cerca de 100 bilhões de células nervosas e neurônios. Cada neurônio tem longas projeções filamentosas chamadas axônios e dendrites, que transmitem informação sob a forma de pulsos elétricos. As dentrites levam sinais para os neurônios e os axônios levam sinais para outras células. A junção entre um axônio e uma dentrite é chamada de sinapse, sendo a informação transmitida através das sinapses por mensageiros químicos chamados neurotransmissores. A neurogênese aumenta as conexões entre sinapses e isto, mais que apenas a geração de novas células cerebrais, tem um impacto real sobre o modo como nossa mente trabalha.
A neurogênese nos capacita a fazer novas conexões para reconhecer uma novidade; de outro modo, as conexões anteriormente estabelecidas podem fazer com que vejamos inclusive coisas novas de um modo antigo, obsoleto. Essa capacidade de criar novas conexões declina em geral com a idade, mas pode ser intensificada se vivermos num “ambiente enriquecido”, onde encontremos coisas interessantes, novas e desafiadoras para fazer e experimentar. Tal ambiente enriquecido pode também incluir o mundo de nossa imaginação e todas as atividades que realizamos com a mente. A meditação, portanto, pode ser um dos meios mais eficientes de rejuvenescer o cérebro e a mente.
Descobertas recentes de cientistas da Universidade McGill, em Montreal, desafiam a visão de que os seres humanos são escravos de seus genes, de seus neurotransmissores e da rede elétrica do cérebro. O novo campo que esses pesquisadores estão explorando é a epigenética, o estudo de mudanças funcionais no genoma que não envolvem alterações no sequenciamento de DNA dos próprios genes. Os genes podem estar muito ativos, pouco ativos ou adormecidos. A extensão de sua atividade é determinada pelo ambiente químico e isso é influenciado, entre outras coisas, pelo cuidado dos pais. Fatores ambientais podem levar à produção de proteínas chamadas fatores de transcrição, que determinam como os genes influenciam o resto do organismo humano. O gene é constituído de dois segmentos: um produz proteínas e o outro é um ponto regulador que liga e desliga o gene. Os fatores de transcrição interagem com o segundo. Estudos de animais e humanos mostraram que carinhos maternos adequados e baixos níveis de stress são importantes para produzir níveis apropriados das substâncias químicas cerebrais necessárias à saúde e ao equilíbrio emocionais. Os genes que herdamos de nossos ancestrais, influenciados por milhões de anos de seleção natural, não determinam inevitavelmente nossas personalidades, aptidões ou caráter. Pelo contrário, nosso comportamento físico e mental pode influenciar se nossos genes ficarão muito ativos, pouco ativos ou adormecidos. Por exemplo, uma criança pode ter uma predisposição genética para o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), mas com treinamento da atenção, a atividade dos genes relevantes pode ser reduzida ou detida.
O stress prejudica a neurogênese, mas certos tipos de atividades a promovem e é aí que a meditação pode desempenhar um papel-chave. Até recentemente, a maioria dos estudos científicos de meditação eram considerados “ciência marginal”. Essa área, contudo, começou a atrair atenção pública no final dos anos 60, quando médicos da Faculdade de Medicina de Harvard e da Universidade da Califórnia em Irvine descobriram que um grupo que praticava Meditação Transcendental (MT) mostrava uma diminuição no stress e na ansiedade, relacionado a um consumo mais baixo de oxigênio e a um ritmo respiratório mais lento. Essa meditação compreende a concentração por 20 minutos ou mais num mantra recitado mentalmente com o objetivo de transcender o estado normal de consciência. Os pesquisadores teorizaram que duas atividades – repetição, como na recitação de uma palavra ou prece, e a desatenção deliberada a pensamentos concorrentes – levavam a uma “resposta de relaxamento”. Como resultado de estudos similares durante várias décadas, esse tipo de meditação é agora um tratamento recomendado para a hipertensão, arritmias cardíacas, dor crônica, insônia e os efeitos colaterais da terapia do câncer e da AIDS.
A meditação está se tornando extremamente popular como coadjuvante nas terapias médicas convencionais para o tratamento de uma ampla variedade de doenças crônicas, incluindo o câncer, hipertensão e psoríase. Pesquisadores da Escola de Medicina de Yale estudaram recentemente os efeitos da meditação para melhorar a qualidade de vida de pacientes que estão morrendo de AIDS. Eles reconheceram que, mesmo nos casos de doença terminal, a qualide de vida continua sendo importante, assim como a qualidade e a serenidade da morte da pessoa. No California Pacific Medical Center em San Francisco, o ZHP, Zen Hospice Project [Projeto Zen de Cuidados Paliativos], foi idealizado para descobrir como a permanência junto a residentes terminais afetava o bem-estar dos voluntários do centro e para compreender o papel da prática espiritual na atenuação do medo da morte. Nesse projeto, tem sido oferecido um programa de treinamento de 40 horas para orientar os voluntários, com ênfase na compaixão, na serenidade de espírito, na atenção plena e na prática do cuidado à cabeceira do doente. Entre os efeitos deste treinamento, constatou-se um sentimento mais forte de compaixão e uma diminuição do medo da morte.
Num estudo relacionado, pesquisadores confirmaram os efeitos benéficos de uma meditação de atenção plena, praticada com regularidade, entre os cuidadores de um abrigo zen. Atenção Plena, nesse contexto, é compreendida como um estado em que a pessoa está extremamente consciente da realidade do momento presente e concentrada nela, aceitando-a e apreciando-a, sem se ver enredada por pensamentos sobre a situação ou por reações emocionais a ela. Com a meditação da atenção plena, ensinou-se aos cuidadores do abrigo a concentrar a atenção na respiração e a reparar como os pensamentos, emoções e sensações apareciam e iam embora. Quando eles percebiam que tinham se perdido nos conteúdos da mente – pensamentos, emoções e o tagarelar mental interior – , eram encorajados a redirecionar suavemente a atenção para a respiração até que o nível de concentração fosse estabilizado.
Com o passar do tempo, os participantes desse estudo descobriram que ia ficando mais fácil fazer a atenção voltar ao momento presente. Ao praticar, durante todo o dia, a meditação em ação, prestavam atenção ao que estavam fazendo e por quê. A atenção plena não era vivenciada como presa ao passado, ao futuro ou ao “agora”, mas como um relaxamento na imediaticidade do que estivesse acontecendo. Como meio de treinamento da mente, aplicaram a atenção plena às tarefas cotidianas do seu serviço: cozinhar, lavar para os residentes, alimentar, fazer companhia a eles, ouvir. Os benefícios que experimentavam, como resultado dessa prática, incluíam um senso de inseparabilidade entre cuidadores e residentes, pois encontravam tranquilidade enquanto se ocupavam de suas atividades, deixando de querer que as coisas fossem diferentes, de temer o que pudesse acontecer e mantendo um foco claro por entre as emoções.
Começando a trabalhar no fim da década de 1970, Jon Kabat-Zinn, pesquisador da Clínica de Redução do Stress do Centro Médico da Universidade de Massachusetts, desenvolveu um programa de Redução do Stress Baseado na Atenção Plena (MBSR ), que agora está sendo ensinado em mais de 250 clínicas mundo afora. Como Kabat-Zinn assinalou, em 1990, num encontro com o Dalai Lama sobre atenção plena, emoções e saúde, o stress agrava os sintomas de todas as doenças conhecidas, do resfriado comum ao câncer. Assim, aliviar o stress com meditação pode potencialmente ter um impacto enorme em nosso bem-estar físico e psicológico. Por exemplo, pesquisadores da Universidade de Toronto mostraram que a meditação pode impedir a recaída em depressão de pacientes com um histórico de transtornos recorrentes do temperamento e outros estudos sustentam esta descoberta. Um número rapidamente crescente de estudos da meditação em pesquisas importantes de universidades mundo afora estão demonstrando seus benefícios para um conjunto cada vez amplo de problemas psicológicos e físicos. Descobriu-se que mesmo breves períodos de meditação no decorrer do dia são mais repousantes e saudáveis para o corpo e a mente do que tirar cochilos.
Num desses estudos, Kabat-Zinn juntou-se a Richard Davidson, que chefia o laboratório W. M. Keck para o Mapeamento Funcional do Cérebro da Universidade de Wisconsin, em Madison. Davidson começou a estudar a relação entre as emoções, o cérebro e a meditação nos anos 70. Kabat-Zinn e Davidson recentemente conduziram um estudo sobre os efeitos de oito semanas de treinamento básico em meditação de atenção plena em um grupo de trabalhadores altamente estressados de uma firma de biotecnologia do Wisconsin. Os resultados preliminares revelaram que aqueles que receberam o treinamento mostraram uma maior ativação do lobo pré-frontal esquerdo, tanto em repouso como quando expostos a desafios emocionais. A maior ativação dessa área do cérebro está associada a emoções positivas e stress reduzido, juntamente com melhorias no sistema imunológico.
Desde então, Davidson e sua equipe têm estudado contemplativos budistas tibetanos altamente avançados que passaram por um treinamento meditativo de até 60 mil horas. Quando os pesquisadores conectaram esses monges a sensores de eletroencefalograma, encontraram um aumento impressionante de ondas gama geradas pelo cérebro como um todo e atividade neural intensificada no córtex pré-frontal esquerdo, uma área correlacionada ao relato de sensações de felicidade. Embora não esteja inteiramente claro como se pode interpretar esses dados em termos de experiência humana, eles de fato sugerem que tal treinamento mental desencadeia mecanismos integradores no cérebro e pode induzir mudanças neurais a curto e a longo prazos.
Outro estudo feito por pesquisadores da Universidade de Harvard no Hospital Geral de Massachusetts sugere que a meditação a longo prazo pode aumentar a espessura do córtex, que é a camada externa do cérebro. Usando medidas MRI , eles descobriram que meditação envolvendo atenção concentrada nos estados e processos mentais da pessoa levava a um engrossamento das regiões do cérebro associadas à atenção, à introspecção e ao processamento sensorial. Diferenças na espessura cortical pré-frontal eram extremamente pronunciadas nos participantes mais velhos, sugerindo que a meditação podia compensar a deterioração da atenção e do foco na observação do ambiente relacionados com a idade.
Psicólogos da Universidade de Oregon estiveram investigando a possibilidade de treinar crianças novas para reforçar a atenção executiva – a capacidade de regular nossas respostas psicológicas e comportamentais, particularmente em situações de conflito. Quando nossas emoções são fortemente provocadas, nossa capacidade de atenção executiva permite que nos mantenhamos concentrados no que é importante, sem nos deixarmos levar por pensamentos e memórias compulsivas. Esse aspecto da atenção sofre um desenvolvimento particularmente rápido entre os 2 e 7 anos de idade, mas se acredita que continue a se desenvolver até o início da idade adulta. Num estudo recente, foi dado treinamento a crianças entre os 4 e 6 anos de idade (o grupo ideal para estudar esses efeitos de treinamento) destinado a reforçar a atenção executiva. O estudo mostrou, pela primeira vez, que aptidões de atenção executiva podem ser exercitadas em crianças novas, o que pode potencialmente levar a melhores tipos de tratamento para crianças com problemas de atenção e outros problemas comportamentais. Os pesquisadores também acreditam que o efeito do treinamento da atenção pode se estender a habilidades mais gerais, como as medidas por testes de inteligência. Em outras palavras, aumentar sua capacidade de atenção pode também ajudar a aumentar seu QI.
Um dos estudos mais importantes sobre os efeitos da meditação na atenção foi recentemente conduzido pela neurocientista Amishi Jha e dois de seus colegas na Universidade da Pensilvânia. Eles compararam os efeitos de grupos de meditadores empenhados em dois tipos de treinamento de atenção plena. O primeiro grupo consistia de principiantes em meditação que participavam de um curso de redução do stress baseada na atenção plena com oito semanas de duração, envolvendo apenas 30 minutos por dia de concentração na respiração, fazendo a atenção retornar gentilmente ao objeto sempre que ela se desviava. Um segundo grupo compreendia meditadores experientes participando de um retiro de um mês para a prática intensiva de meditação de atenção plena, o que faziam de 10 a 12 horas por dia. Um terceiro grupo consistia de pessoas que jamais tinham meditado nem recebido nenhum tipo de treinamento. Na conclusão dos respectivos cursos de treinamento, descobriu-se que o primeiro grupo era mais capaz de concentrar sua atenção no objeto meditativo que o segundo e terceiro grupos, enquanto o segundo grupo era mais competente que o primeiro e o terceiro grupos para adquirir plena consciência do ambiente.
Embora o treinamento da atenção não deixe de ser um fator essencial para provocar mudanças psicológicas positvas, outros aspectos da mente, como desejos, atitudes e emoções, também precisam ser levados em conta. No outono do ano 2000, o Dalai Lama se encontrou com um grupo de psicólogos cognitivos para explorar o tema das emoções destrutivas a partir das perspectivas científica e budista. Tive o privilégio de servir como um dos intérpretes nesse encontro. Após vários dias de fascinante diálogo abordando disciplinas e culturas, o Dalai Lama comentou que, por mais úteis que fossem essas discussões, era mais importante que aplicássemos nosso conhecimento e experiência coletivos de maneira a que eles trouxessem um benefício prático para o mundo. Um dos participantes, Paul Ekman, professor emérito de psicologia da Universidade da Califórnia em San Francisco, querendo se mostrar à altura do desafio, deu início ao desenvolvimento do programa Cultivando o Equilíbrio Emocional (CEB ). Tanto ele quanto o Dalai Lama pediram que eu me associasse a esse projeto de pesquisa desde o começo. Paul e eu preparamos um programa de treinamento de oito semanas, incluindo intervenções psicológicas e meditações de tradição budista. Esse treinamento integrado incluía práticas para reforçar a atenção executiva, a atenção plena e o cultivo da empatia, do afeto e da compaixão. Em 2003, organizamos um estudo piloto e desde então, sob a direção de Margaret Kemeny, outra psicóloga da UCSF, realizamos dois experimentos clínicos em que oferecemos esse treinamento a grupos de professores de escola primária. Recomendamos que todos os participantes meditassem ao menos 25 minutos por dia e eles foram também instruídos sobre como “temperar cada dia” com atenção plena, o que implicava disseminar momentos de meditação durante todo o dia, por exemplo, enquanto a pessoa estivesse parada num sinal vermelho, esperando numa fila, entre a leitura de mensagens de e-mail e assim por diante.
Descobrimos que a participação no treinamento CEB estava associada a significativas e, em muitos casos, espetaculares reduções da depressão, na ansiedade crônica, nas emoções negativas (como irritação, frustração e hostilidade) e no pensamento compulsivo. Do lado positivo, esse treinamento resultou em incrementos significativos nas emoções positivas (como a paciência, a empatia, a afeição e a compaixão), na atenção plena, na atenção a outros e num sono mais reparador. Esses benefícios psicológicos foram observados no final do treinamento e cinco meses mais tarde ainda estavam presentes.
Sob a ótica do sistema nervoso dos participantes, eles experimentavam, como resultado do treinamento, menos “desgaste” quando confrontados com uma situação emocionalmente penosa e retornavam ao equilíbrio com mais rapidez, assim que o episódio se encerrava. As respostas hormonais também mudaram para melhor. O cortisol, com frequência mencionado como o “hormônio do stress” básico, é um hormônio esteroide produzido na glândula suprarrenal em resposta ao stress. É necessário para manter processos fisiológicos normais durante períodos de stress, mas níveis excessivamente altos de cortisol na corrente sanguínea podem levar a uma performance cognitiva deteriorada, função suprimida da tireoide, desequilíbrios de açúcar no sangue, como a hiperglicemia, decréscimo da densidade óssea e do tecido muscular, e elevada pressão sanguínea. Evidência recente sugere que níveis excessivamente baixos de cortisol podem ser associados à depressão e ao colapso nervoso, assim como ao risco de doenças inflamatórias. Participantes do treinamento CEB mostraram uma recuperação mais rápida da atividade do cortisol, o que indica que seus sistemas de cortisol podem ter respondido de forma mais flexível a situações de transtorno emocional. Em suma, esse treinamento reforçou a capacidade de os professores primários se recuperarem em termos psicológicos, vegetativos e hormonais de transtornos emocionais. Dada a natureza altamente estressante de sua profissão, parece provável que o treinamento mental que os ajudou possa ajudar praticamente todos que estão tentando enfrentar as dificuldades da vida moderna.
Um dos aspectos mais interessantes da psique humana é o que Ekman chama de o período refratário. Geralmente acontece logo após alguma experiência emocionalmente perturbadora e deixa claro que, durante o tempo de sua duração, “nosso pensamento não consegue incorporar informação que não conserve, justifique ou se ajuste à emoção que estamos sentindo” e isso “deforma o modo como vemos o mundo e a nós mesmos”. Por exemplo, se alguém ficou furioso com um colega no trabalho, só conseguirá, durante o período refratário, concentrar sua atenção naqueles aspectos da personalidade e do comportamento dele que sustentem os seus atuais sentimentos de hostilidade. Mesmo que a pessoa se recorde de algum comportamento neutro ou mesmo positivo por parte dele, não poderá deixar de vê-lo sob uma luz negativa, podendo ficar, durante algum tempo, cego para todas as suas virtudes.
Com relação ao período refratário, a meditação se torna uma espécie de “painel de instrumentos para as emoções”, capacitando a pessoa a conferir os medidores e concluir objetivamente se está prestes a superaquecer, para que não seja apanhada de surpresa quando sua mente começar a ferver. A base neural dessas reações emocionais é o sistema límbico, que é conectado ao córtex pré-frontal. Agindo sobre o córtex pré-frontal, a meditação pode ajudar a restaurar nosso equilíbrio emocional quando ficamos transtornados pelo medo ou pela raiva. Para a maioria de nós, passa-se apenas um quarto de segundo entre o evento desencadeador e a resposta da amígdala ou centro do medo. Nessa fração de segundo, nossas emoções têm tempo de fazer submergir nosso julgamento e elas frequentemente o fazem. A meditação – que traz crescente sensibilidade a tais reações – nos proporciona a oportunidade de quebrar essa nítida reação em cadeia, permitindo que reconheçamos “a centelha antes da chama”. Desse modo podemos começar a fazer opções mais informadas sobre as emoções a que devemos dar vazão e as que não devemos deixar que se manifestem.
O treinamento da meditação também pode ser útil para ampliar uma vasta coleção de outras virtudes humanas, incluindo a qualidade simples da bondade. Durante o encontro com o Dalai Lama em 2000, Paul Ekman teve a oportunidade de passar alguns minutos numa conversa cara a cara com ele. “Ele segurou minhas mãos enquanto conversávamos”, Ekman recordou, “e fui tomado de um sentimento de generosidade e uma sensação única na totalidade do corpo, que não tenho palavras para descrever.” Depois de lutar contra o rancor e a cólera durante a maior parte da vida adulta, Ekman diz agora que compreende o que é realmente ter disposição para estar alegre e otimista quase todo todo dia. Aos 72 anos de idade, ele comentou recentemente: “Se eu tivesse uns trinta anos a menos, assumiria como tarefa científica tentar explicar o que aconteceu naquele dia”. Ele está ávido por saber como o Dalai Lama curou-o literalmente de uma hora para a outra do temperamento explosivo que o mantivera durante anos na psicanálise. Com esse objetivo em mente, entrevistou recentemente outras oito pessoas que passaram por transformações semelhantes depois de um encontro com o Dalai Lama.
Tive meu primeiro encontro particular com o Dalai Lama no outono de 1971, quando estava morando em Dharamsala, na Índia. Esse primeiro encontro teve um impacto profundo sobre mim, que foi reforçado oito anos mais tarde, quando tive a oportunidade de servir como seu intérprete num giro de conferências pela Europa, pouco antes de sua primeira visita aos Estados Unidos. Percebi que estar dia após em sua presença era como habitar numa esfera de generosidade, que trazia com ela uma sensação de serenidade e bem-estar que eu jamais havia vivenciado antes. Quem quer que tenha encontrado pessoas tão extraordinárias não pode deixar de perguntar: elas nascem assim ou será que os excepcionais atributos de sabedoria e compaixão podem ser cultivados com treinamento? Ao refletir sobre sua vida, o Dalai Lama deixou bem claro que sua prática espiritual, incluindo meditação diária durante mais de cinquenta anos, transformou-lhe a mente de forma profunda, sob muitos e benéficos aspectos. Todo ano ele viaja pelo mundo, ensinando práticas meditativas que se apoiam em 2500 anos de experiência da tradição budista, assim como em sua própria experiência pessoal.
Um número de cientistas cognitivos que cresce rapidamente, em especial os que estão penas no ínicio da carreira, vêm expressando interesse em combinar os métodos científicos da psicologia e da neurociência com as abordagens contemplativas do budismo e outras tradições. Desejam explorar a mente de múltiplas perspectivas. Desde 2003, o Instituto Mente e Vida (Mind and Life Institute), que tem patrocinado encontros sobre budismo e ciência com o Dalai Lama desde 1987, vem realizando seminários de verão, com uma semana de duração, assistidos por estudantes graduados e pós-graduados nas ciências da mente e humanidades. Durante esses seminários intensivos, veteranos pesquisadores compartilham as descobertas de suas pesquisas mais recentes sobre meditação, enquanto estudiosos e contemplativos budistas ensinam doutrina budista e meditação a todos os participantes. Desse modo, está emergindo uma nova geração de “cientistas contemplativos”, pessoas com treinamento profissional tanto nas ciências cognitivas quanto na teoria e prática da meditação.
Seguindo parâmetros semelhantes, no inverno de 2007, o Instituto Santa Bárbara para Estudos da Consciência começou a realizar uma série de retiros de meditação especificamente para cientistas com pesquisas nos campos da psicologia e neurociência. Durante o século XIX, as ciências da mente procuraram se distanciar de qualquer coisa associada à religião ou mesmo à filosofia. Mas agora, cientistas da área estão mostrando uma abertura e uma curiosidade sem precedentes para aprender mais sobre os benefícios fisiológicos e psicológicos da meditação e para explorar uma possível importância na investigação da natureza da mente a partir de dentro.
Isso pode assinalar um momento realmente decisivo na história da ciência, que durante seus primeiros quatrocentos anos fixou a atenção exclusivamente no mundo objetivo, físico. No futuro, o foco unificado da pesquisa científica objetiva, dirigida para fora, e da pesquisa contemplativa, dirigida para dentro, com certeza trará um aprofundamento sem precedentes de nossa compreensão da natureza e dos potenciais da consciência.
Fonte:
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Digitação: Lama Jigme Lhawang
Notas:
[1] D.M. Strong, trad., The Udana, or the Solemn Utterances of the Buddha (Oxford, Pali Text Society, 1994), 68-9.
[2] O autor se refere à palavra “contemplation” que, em inglês, tem o sentido de “reflexão” mais nítido do que em português. (N. do T.)
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