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AS DIMENSÕES COGNITIVAS DE MINDFULNESS - George Dreyfus - Ciência Contemplativa

AS DIMENSÕES COGNITIVAS DE MINDFULNESS – George Dreyfus

AS DIMENSÕES COGNITIVAS DE MINDFULNESS
Seria mindfulness estar no presente e suspender os julgamentos? Uma discussão das dimensões cognitivas de mindfulness.

Georges Dreyfus

Este artigo critica a caracterização comum de mindfulness enquanto uma prática voltada exclusivamente ao foco no momento presente e a isenção de julgamentos na consciência – argumenta-se no sentido de que essa caracterização perde de vista alguns aspectos centrais da prática de mindfulness, conforme os registros budistas clássicos, que priorizam não só o presente como também o passado. O autor demonstra que, de acordo com essas fontes, o aspecto central da mindfulness não é o foco no presente, mas a capacidade de sustentar um objeto meditativo no campo contínuo da atenção, independentemente de o objeto estar ou não no presente. Também procura demonstrar que, de acordo com essas fontes, a mindfulness pode ser explicitamente analítica, tornando explícita a diferença da perspectiva clássica budista e da compreensão moderna de mindfulness enquanto um processo de não julgamento. Conclui que, ainda que a compreensão moderna possa ser útil enquanto um artifício operacional voltado para a instrução prática, ela não oferece uma base adequada para uma análise teórica da mindfulness, uma vez que limita a ênfase em sua natureza reminiscente, no âmbito da memória, para privilegiar seu aspecto não conceitual.

Faz apenas alguns anos desde que eu descobri o alcance do conceito de mindfulness na área da psicologia. A princípio, foi uma surpresa feliz perceber que um conceito tão central da prática budista vinha sendo utilizado com grande efetividade enquanto um instrumento terapêutico, mas logo o meu entusiasmo deu lugar a uma certa inquietação diante das formas com as quais muitos psicólogos abordavam o assunto, tomando-o como mais ou menos autoexplicativo, ou analisando-o a partir das definições superficiais advindas do trabalho de Jon Kabat-Zinn (1990). Impressionou-me o fato de que essas discussões na área da psicologia eram conduzidas sem nenhuma referência séria às fontes originais budistas, das quais elas supostamente bebiam. Como um estudioso de budismo, eu sentia que estas discussões perdiam de vista pontos importantes e apresentavam versões da mindfulness que eu tinha dificuldades em reconhecer. Minha tentação inicial era apenas encarar estas apresentações como ilegítimas, incapazes de fazer jus às ideias encontradas nos textos originais. Isso, porém, não as desqualificava, uma vez que eu acreditava que não há nada de errado em reinterpretar ideias antigas de modo a adaptá-las a um contexto moderno. Eu entendia o uso terapêutico da mindfulness enquanto uma invenção da tradição que oferecia ferramentas e conceitos úteis a um contexto de intervenção terapêutica, mas pensava que todos estariam melhor se fossem abandonadas de uma vez as referências ao budismo e a pretensão de apresentar suas ideias e práticas de maneira autêntica.

Reflexões posteriores transformaram a minha opinião sem, contudo, aliviar meu desconforto. Esta mudança veio como um resultado da minha atenção crescente à imensa multiplicidade de tradições religiosas. Enquanto um acadêmico de estudos religiosos, eu entendo que a pretensão de indicar uma “visão budista da mindfulness” deve encontrar resistência, uma vez que soa como uma tentativa de privilegiar certas partes da tradição em detrimento de outros aspectos menos conhecidos. O budismo é uma tradição plural que evoluiu no decorrer dos séculos, passando a incluir uma grande variedade de perspectivas sobre mindfulness. Portanto, não há uma visão única e particular que corresponde à “visão budista de mindfulness”. O que frequentemente se apresenta como “a visão budista de mindfulness” é geralmente derivada das tradições escolásticas, em particular das várias versões do Abhidharma. Essas apresentações são definitivamente importantes para entender algumas ideias budistas fundamentais, mas não podem ser tomadas enquanto um ponto de referência normativo, de modo que as demais apresentações sejam julgadas como inautênticas. De fato, creio que a retórica da “autenticidade” deve ser encarada com uma boa dose de suspeita. Com muita frequência, trata-se de uma tentativa de recobrar a autoridade e desqualificar outras visões dentro da tradição, visões que podem mesmo ser marginais, mas não são necessariamente ilegítimas. Portanto, reconheço que algumas das minhas reações iniciais ao movimento de mindfulness podem ser reflexos de um desconforto ao ver minha própria ambição de autoridade ser desconsiderada, e minha perspectiva profissional ser ignorada. E, como mencionei mais acima, isso não significa que meu desconforto tenha pacificado.

Nas páginas a seguir, eu irei refletir um pouco sobre as razões desse desconforto e examinar os problemas que percebo nas análises mais recentes de mindfulness, baseado em meu entendimento das fontes originais budistas, com as quais tenho familiaridade enquanto um estudioso dos textos interessado em práticas meditativas e na relação do budismo com as discussões científicas contemporâneas. É importante deixar claro que a minha discussão quanto a mindfulness não tem a pretensão de oferecer uma versão final e definitiva sobre o conceito budista de mindfulness, uma vez que eu não acredito que tal coisa sequer seja possível. Também gostaria de deixar claro que não tenho a intenção de avaliar criticamente as práticas terapêuticas que incluem mindfulness, algo que está completamente fora das minhas competências. O que intenciono é oferecer uma reflexão quanto aos problemas que enxergo na maneira que a mindfulness é conceituada na literatura psicológica e perguntar: a mindfulness precisa ser uma prática de foco no presente e isenta de julgamentos, como parece ser a dimensão expressa pela literatura psicológica? Para responder a questão, eu vou começar com um exame da definição padrão de mindfulness na literatura, que a entende enquanto uma consciência não elaborada e não avaliativa, voltada para o presente. Vou procurar demonstrar como essa definição reflete as instruções práticas dadas no contexto do treinamento e argumentar no sentido de que ela não oferece uma base para uma boa explicação teórica, pois não abarca o aspecto central da mindfulness, que é a sustentação do objeto meditativo – uma atenção sustentada que independe de o objeto meditativo estar ou não no presente. Ao frisar o aspecto de memória e reminiscência da mindfulness, eu enfatizo seu aspecto cognitivo em detrimento do aspecto não conceitual. Argumento adiante que essa habilidade de retenção é proeminente em vários processos cognitivos, nos lembrando de não perder de vista o aspecto mnemônico da mindfulness de modo a não confundir instruções práticas e definições operacionais com análise teórica. Eu concluo apontando as consequências de desconsiderar a dimensão cognitiva na prática de mindfulness.

Uma definição padrão de mindfulness

Ao examinar o que eu considero problemático nas diversas visões de mindfulness na literatura psicológica, obviamente eu não posso falar por todas. Não obstante, creio que há algo próximo de um consenso nesta literatura profissional quanto à caracterização de mindfulness. Essa perspectiva comum pode ser encontrada nos trabalhos de, por exemplo, S. Bishop, que nos ofereceu uma definição que hoje é majoritariamente aceita. Segundo Bishop:

Em sentido amplo, mindfulness pode ser descrita como uma consciência não elaborada, isenta de julgamento, voltada para o presente, na qual cada pensamento, emoção ou sensação que surja no campo perceptivo é reconhecida e aceita tal qual ela é.

Esta definição, que reflete o ponto de vista do terapeuta, engajado em intervenções práticas, aponta para duas características da mindfulness. Primeiro, enfatiza a natureza não avaliativa da mindfulness enquanto um estado de consciência que permite uma observação dos estados mentais sem uma identificação rígida com eles, de modo a gerar uma atitude de aceitação que pode conduzir a mais curiosidade e melhor compreensão de si próprio. Isso conduz a um desengajamento de padrões habituais de reação discursiva e afetiva, de modo a permitir respostas mais refletidas às circunstâncias difíceis da vida, ao invés de manter-se preso aos próprios hábitos e compulsões.

Em segundo lugar, há uma acentuada ênfase no aspecto “presente” da mindfulness, que é compreendido como um foco no que acontece no momento exato da prática. A ideia geral é que, para nos liberarmos, temos de aquietar a mente e nos desvincular das tendências compulsivas que conceituam nossas experiências em termos de gosto ou não gosto. Esta “desautomatização” de nossas tendências habituais de julgamento é realizada a partir da limitação do escopo de nossa atenção para o que está acontecendo no presente momento. Ao invés de constantemente avaliar nossas experiências em termos de memórias passadas ou expectativas futuras, nós precisamos tomar consciência daquilo que está acontecendo no momento, observando nossas experiências e reações ao invés de gerar elaborações quanto ao seu conteúdo. Desta forma, nós seremos capazes de desenvolver um tipo de equanimidade não reativa, que nos permite ver as coisas como são e agir de acordo com a realidade ao invés de sujeitarmo-nos aos nossos padrões rotineiros de reatividade avaliativa.

Já de início, devo constatar que há muito de louvável nesta caracterização de mindfulness. A desautomatização de padrões habituais de reatividade e o despertar de respostas mais amplas certamente é uma parte importante da prática budista, que objetiva liberar a mente de suas compulsões internas condutivas ao sofrimento. Também é nítido o benefício de enfatizar a qualidade de sustentação do momento presente na mindfulness, especialmente no início do caminho, quando a mente se encontra prisioneira de uma discursividade desenfreada. Isso não significa dizer, porém, que mindfulness é necessariamente voltada ao momento presente (como veremos a seguir), nem que é necessariamente isenta de qualquer atividade de avaliação ou julgamento, mas não há dúvidas que a disciplina de manter a mente estável no momento presente e refrear a tagarelice habitual é um estágio importante da educação da atenção, que é a base da prática meditativa.

Permitam-me deixar claro que meu objetivo aqui não é criticar a prática de terapeutas e professores budistas que vêm tentando adaptar conceitos budistas clássicos a um contexto moderno. Tal adaptação é necessária e está fora de questão. Eu almejo lançar um olhar crítico ao modelo teórico que parece pressuposto a esses praticantes, de modo a oferecer uma compreensão teórica mais adequada aos mecanismos cognitivos envolvidos na prática de mindfulness. Para fazer isso, irei examinar o trato da mindfulness em algumas fontes budistas clássicas. Darei ênfase maior, mas não somente, nos claros debates acerca da questão encontrados na tradição escolástica de comentários, em particular nas apresentações presentes nos vários Abhidharmas (a parte do cânone budista que analisa o domínio da experiência senciente e os fenômenos que compõe o universo desta experiência [dharma], listando-os e agrupando-os em categorias apropriadas de modo a desconstruir o postulado de um sujeito substancial, essencial e duradouro). Mesmo um olhar apressado para essas fontes revela que as definições clássicas de mindfulness não correspondem à caracterização de mindfulness enquanto uma experiência focada na consciência do momento presente e isenta de julgamentos. Ainda que este entendimento não seja estranho à tradição, ele não ocupa um local central como parecem presumir muitos praticantes de mindfulness modernos. Podemos, então, nos perguntar como a tradição escolástica budista clássica entende mindfulness e, mais importante, o que podemos aprender dessas fontes clássicas sobre mindfulness de modo a descortinar características que foram até então ignoradas na concepção atual. Antes de fazermos isso, contudo, devemos esclarecer os termos de investigação e entendimento e compreender o campo semântico das palavras que serão usadas nesta discussão.

Mindfulness, sati e retenção

A palavra inglesa mindfulness é uma palavra antiga que indica a qualidade de consciência e atenção. Uma curiosidade que acrescenta na discussão, é que ela também detinha a conotação de rememorar, ou manter um propósito em mente, usos que parecem ter se extinguido com o tempo. Esta palavra foi usada para traduzir vários termos budistas – principalmente a palavra sânscrita smrti (pali sati, tibetano dran pa). Esses termos são frequentemente usados dentro da tradição budista, geralmente considerados centrais na prática de meditação. Não há nada de errado com a tradução mindfulness desde que o leitor tenha em mente o alcance semântico desses termos. Quando exploramos esse alcance, porém, nos damos conta de que o entendimento de mindfulness/sati enquanto uma consciência presente e não avaliativa é problemático pois só toca um dos aspectos nos quais o termo original é empregado.

A palavra smrti (pali sati) vem da raiz sânscrita smr, que significa relembrar, manter em mente. Esta palavra pode fazer referência ao ato de se lembrar e manter em mente, como também àquilo que se mantém em mente. Por essa razão, a tradição hindu algumas vezes chama seus textos mais mundanos de smrti, aquilo que é lembrado, em contraste com os vedas, que são sruti, aquilo que foi ouvido diretamente. No contexto budista, esta palavra geralmente tem uma um significado mais restrito e diz respeito à qualidade da mente quando está relembrando algo ou mantendo em mente algum objeto. O grande escoliasta Buddhaghosa dá esta definição de sati no contexto clássico da tradição theravada:

Através de sati, eles [outros processos mentais] se lembram (saranti), ou então sati em si mesma se lembra, ou há apenas a rememoração (sarana). Portanto, a característica da mindfulness (sati) é a não oscilação; sua função é prevenir o esquecimento. É manifesta enquanto um estado de vigília, ou de estar frente à frente com um objeto meditativo.

(Nyanamoli Bhikkhu 1976, XIV 141).

Esta caracterização de sati é significativa por pelo menos três motivos. Primeiro, não é possível deixar de ser impactado pelo obscurantismo do texto, que define a palavra sati como “não oscilação”. O que isso significa? Segundo, as várias conotações sugeridas por Buddhaghosa como “não oscilação” e “lembrança” não parecem se encaixar confortavelmente em um único conceito. Portanto, ficamos a nos perguntar porque elas estão comprimidas em um único termo? Terceiro, esse entendimento de sati não parece em nada com a compreensão de mindfulness enquanto um foco no momento presente. Aqui há uma contradição clara com a compreensão que temos de mindfulness, uma vez que sati é uma ação de lembrar-se do passado e, portanto, não tem foco exclusivo no presente.

Quando recorremos a outros textos clássicos encontramos perspectivas de mindfulness que estão ainda mais distantes do entendimento contemporâneo. O Perguntas ao Rei Milinda, por exemplo, nos confere uma descrição de mindfulness explicitamente avaliativa. Respondendo às questões do rei grego Milinda, o monge Nagasena oferece uma extensa resposta que entende mindfulness como “não divagação” e “assunção”. Enquanto explicando essa última caracterização, ele enfatiza a dimensão ética de mindfulness, apontando que a função de mindfulness não é somente manter-se atento ao que acontece no presente, mas também engajar-se em não divagação de estados mentais positivos e negativos. Esta ênfase ética se encaixa na compreensão de mindfulness enquanto assunção, que é explicada como um exame dos estados mentais benéficos em detrimento dos tantos outros possíveis (Mendis, 1993, 37-8). Esse entendimento de mindfulness está bem distante da compreensão de mindfulness enquanto uma consciência não discriminativa, uma vez que, se mindfulness envolve a avaliação entre estados mentais positivos e negativos, ela deve necessariamente deter aspectos cognitivos e avaliativos – um contraste direto com a ideia de mindfulness enquanto uma aceitação não discriminativa do que quer que surja no fluxo da consciência.

É importante deixar claro que o propósito da discussão não é jogar um jogo de “pega” acadêmico, apontando para o contraste entre a compreensão de mindfulness enquanto uma prática voltada ao presente e não discriminativa e as maneiras que as fontes clássicas abordam o conceito. O que, de fato, eu almejo aqui é buscar uma conceituação melhor de mindfulness de modo a abarcar suas implicações cognitivas, que correm o risco de se perder na pressa de adequá-la a essa compreensão de momento presente não discriminativo. Para tanto, creio que será útil refletir sobre as maneiras nas quais as fontes clássicas fazem uso do conceito mindfulness/sati. Como é possível que esse termo tenha tantas conotações diferentes (“não oscilação”; “relembrar”; “frente a frente com o objeto”; “assunção e análise” etc.)? O que todas essas conotações têm em comum? É importante clarificar que a ideia de uma meditação voltada para o presente e não discriminativa não será de muita ajuda aqui, uma vez que sati pode indicar tanto a relembrança do passado como a atenção ao momento presente. Portanto, ao invés de se contentar com esta representação de mindfulness, acredito que devemos investigar as maneiras que o conceito funciona cognitivamente, particularmente as maneiras que está vinculado à retenção de informação, além da mera atenção ao objeto.

A ideia de mindfulness enquanto retenção de informação pode ser surpreendente dada a aceitação quase universal da definição de mindfulness enquanto uma consciência voltada para o presente e não discriminativa. Não obstante, a ideia de mindfulness enquanto uma espécie de sustentação, diferente da mera atenção passiva, encaixa-se perfeitamente bem nas descrições clássicas budistas encontradas no Abhidharma, onde consensualmente se entende que mindfulness enquanto a habilidade da mente de permanecer presente sobre um objeto sem se distrair. Meu argumento vai em direção a que é esta habilidade retentiva da mente que deve ser considerada como definidora de mindfulness, e não sua suposta concentração não conceitual no momento presente. É ela que permite à mente sustentar um objeto no campo perceptivo, assim como lembrar-se dele posteriormente. Portanto, não deveria ser surpresa que a mindfulness seja apresentada como relevante tanto na sustentação de um objeto presente, quanto na sua preservação para uma relembrança futura. Ambas são formas de sustentar informação, portanto descritas enquanto tipos de mindfulness/sati. Também incluo no meu argumento o fato de que esta habilidade retentiva é central para compreender como mindfulness opera cognitivamente e as transformações subsequentes à sua aplicação.

Essa habilidade retentiva da mindfulness é conectada diretamente à memória funcional, a habilidade da mente de reter e contextualizar informações. Quando observamos um objeto, nós não somos apresentados a fatias temporais distintas desse objeto. De fato, nós o integramos a um fluxo temporal de modo que eles adquiram sentido. Eu não observo uma pessoa se movendo através de várias posições no espaço, mas em fluxo de movimento de um local para o outro. Portanto, a consciência detém a habilidade de gerar ressonância entre vários processos cognitivos distintos, de modo que a informação gerida faça sentido e produz padrões coerentes entre si, que podem ou não ser representações exatas dos objetos externos, mas são, de qualquer forma, boas o suficiente para guiarmos nossas ações. Esta geração de sentido está intimamente vinculada à memória funcional, a capacidade da mente de preservar e manipular informações relevantes de modo a se engajar em atividades fundamentadas e direcionadas.

A ideia aqui não é igualar a habilidade retentiva da consciência, a memória funcional e a mindfulness, mas argumentar no sentido de que há uma significativa justaposição entre elas que nos ajuda a entender o que Buddhaghosa tinha em mente quando ele define mindfulness enquanto uma “não oscilação”. Mindfulness é a habilidade de sustentar um objeto no campo da atenção sem perdê-lo. Tal habilidade não pode ser entendida como um simples processo de ascendência onde nossa mente simplesmente permanece aberta ao que quer que surja, mas deve ser encarada inseparável da habilidade descendente da mente de reter e conservar informação, de modo que a experiência do momento presente possa ser integrada ao fluxo temporal da experiência como um todo. Esta habilidade de retenção da mindfulness é uma habilidade natural que a mente detém, que pode ser fortalecida com a prática, mas que existe naturalmente em todas as pessoas, ao menos em determinado grau. É esta capacidade descendente de retenção de informação que é fortalecida com a prática da meditação e que é apontada quando falamos sobre modos sustentados de atenção, nos quais a mente não é carregada pelo fluxo pulsante de informação, mas é capaz de se deter sobre objetos de maneira continuada.

Mindfulness não é uma consciência não discriminativa focada no presente, mas a concentração da atenção em um objeto, conducente à retenção de informação que é processada em termos de significado pelo nosso aparato cognitivo. Portanto, longe de ser limitada ao momento presente e à mera suspensão de julgamentos, mindfulness é uma atividade cognitiva intimamente associada à memória, em particular à memória funcional, à habilidade de preservar informações relevantes ativas de modo a integrá-las em padrões de significado e usadas para atividades direcionadas (Jha et al., 2010). Através da atenção concentrada, os praticantes de mindfulness fortalecem seu controle cognitivo a partir do desenvolvimento da habilidade de retenção de informação, que os permite enxergar os verdadeiros significados ao invés de ser carregados por suas reações. Aquilo que é objeto de atenção pode ser preservado pela memória funcional e, então, tornar-se passível de uma avaliação adequada.

Essa conexão entre mindfulness, memória funcional e discriminação adequada se torna evidente quando olhamos para o ensinamento fundacional do Buda sobre mindfulness – o Satipatthana Sutta. Esse texto complexo, supostamente registro das próprias palavras do Buda (diferente do Abhidharma, que é uma sistematização das palavras do fundador), introduz uma prática complexa para desenvolver mindfulness diante de quatro eixos: mindfulness de corpo, sensações, consciência e fatores mentais (as quatro aplicações de mindfulness, satipatthana). Para cada uma das quatro aplicações, o discurso explica como mindfulness deve ser praticada. Quanto ao corpo, o texto descreve diversas contemplações que devem ser conduzidas quanto às atividades de corpo, respiração, posturas e composição anatômica. Em relação às posturas, por exemplo, o texto explica o desenvolvimento de mindfulness baseado na consciência sobre a postura. O texto diz: “…quando andando, há consciência “e estou andando”, quando em parado…” (Analayo, 2003, 5). Do mesmo modo, quando lidando com atividades de corpo, respiração, sensações e outros objetos de contemplação, o discurso enfatiza o desenvolvimento de presença mental diante do que está sendo contemplado, de modo que o praticante se mantenha vivamente consciente da experiência que está atravessando. Portanto, fica bem claro que para o Satipatthana Sutta, mindfulness não é apenas uma prática não discriminativa de centralização no presente, mas envolve a habilidade da mente de perceber e reter qualquer experiência em que esteja engajada, de modo a desenvolver uma compreensão clara desta experiência e uma habilidade de retomar esta experiência no futuro. Esse aspecto discriminativo da prática de mindfulness se torna mais evidente na passagem de Perguntas ao Rei Milinda discutida mais acima, na qual mindfulness é descrita enquanto a capacidade de discriminar entre qualidades positivas e negativas. Para entender melhor o papel e dimensão desta forma de mindfulness discriminativa, pode ser útil ampliar o escopo de nossa investigação e incluir, mesmo que de maneira breve, uma descrição das maneiras com as quais o Abhidharma apresenta toda a gama e diversidade de modos de atenção.

Uma fenomenologia da atenção

Abhidharma oferece uma rica análise dos vários aspectos da mente, entendendo-os enquanto compostos de séries de estados mentais temporários. Cada estado mental surge a partir da dependência de várias condições (por exemplo, a consciência imediatamente anterior, o objeto, a base sensorial). Tendo surgido, ele executa sua função e se dissolve, dando origem ao próximo estado mental, formando, assim, uma cadeia ou fluxo de consciência, similar ao fluxo de consciência ao estilo de William James. Cada estado é entendido enquanto um momento de consciência (citta, sems) dotado de várias características, os fatores mentais (caitasika, sems byung). Atenção, que também é descrita como consciência (vijnana, rnam shes), tem primazia uma vez que é a partir dela que se estabelece o vínculo com o objeto, conquanto os fatores mentais qualifiquem essa atenção/consciência como agradável ou desagradável, focada ou dispersa, tranquila ou agitada, positiva ou negativa etc.

Esses fatores mentais pertencem a vários aspectos da operação mental. Alguns (sensações) pertencem ao domínio afetivo, conquanto outros (intenções) são conativos ou cognitivos (distinções) em sua natureza. Em uma simplificação grosseira, podemos dizer que o Abhidharma entende que esses vários aspectos operam simultaneamente e que eles nada mais são do que qualidades que caracterizam episódios de consciência. Entre essas qualidades, uma parcela razoável está contida no domínio da atenção – um aspecto importante dos processos mentais analisados no Abhidharma. Para o Abhidharma, a atenção começa em um estado prévio de orientação (manasikara, também traduzido como atenção). Isto se refere à habilidade mental automática e anterior à atenção propriamente dita de voltar-se para um objeto e selecioná-lo. Bhikkhu Bodhi explica: “Atenção (ou orientação) é o fator mental responsável por advertir a mente de um objeto, de modo que, assim, o objeto se torne presente na consciência. Sua característica é a condução dos estados mentais associados ao objeto. Sua função é unir os estados mentais associados ao objeto” (Bodhi 2000, 81). Todo estado mental, contanto que seja consciente, detém um grau mínimo de foco sobre um objeto. Portanto, a orientação é um fator onipresente, é dizer, todo estado mental o detém em algum nível. Diz respeito à apreensão pré-atentiva que se dá quando o objeto atrai nossa atenção antes de ser tomado para um exame mais íntimo.

Esse processo atentivo continua com mindfulness e concentração meditativa (samadhi). Mindfulness é descrita, conforme expusemos anteriormente, como a retenção de informação de modo que a mente não seja carregada pelo objeto. Vasubandhu entende que ela é universal, conquanto Asanga limita sua presença à estados de mente operativos, argumentando que ela não existe em estados de consciência sutis. Não obstante, ambos concordam que ela é um aspecto fundamental da mente – colocar atenção sobre um objeto livre de divagações. A orientação volta a mente para o objeto, conquanto mindfulness retenha este objeto e sustente a presença da mente sobre ele. A concentração completa esta análise do tratamento do Abhidharma quanto à atenção. Concentração é a habilidade de manter-se focado em e unificado a um objeto (Rahula ,1980, 8). Ainda que essa habilidade seja desenvolvida com a prática de meditação, ela existe naturalmente na mente, uma vez que nada mais é do que a habilidade da consciência de se fixar em um objeto. Vasubandhu entende que ela é um fator universal; já Asanga a exclui dos estados sutis. Ainda assim, ambos concordam quanto a sua centralidade no processo da atenção.

Esses dois fatores (mindfulness e concentração) trabalham em cooperação, fortalecendo e aprimorando as qualidades da atenção. Ambos correspondem ao estado no qual nós intencionalmente detectamos um objeto e o trazemos ao campo da plena atenção: a habilidade da mente de focar um objeto e retê-lo. Porém, esses dois fatores também operam de maneiras diferentes. Concentração aprimora a habilidade seletiva da orientação pré-atentiva. Ela estabiliza a mente no objeto, mas tende a restringir a extensão do campo de consideração consciente. Em si mesma, conduz a um foco mais profundo, porém mais estreito. Mindfulness, por outro lado, amplia a extensão da atenção de modo que nos tornamos conscientes das características da experiência (Analayo, 2003, 63–4). Portanto, conforme o Abhidharma, atenção não é apenas um meio de selecionar determinados estímulos sensoriais e focar nestes estímulos, mas também implica em uma função cognitiva, que agrupa os vários aspectos de um objeto de modo a gerar um significado a partir desse agrupamento. Atenção é a cola cognitiva que une as diversas qualidades elementares de um fenômeno e transforma essas qualidades em formas e objetos identificáveis, dotados de significado no campo de nossa experiência. Entendo que esta habilidade cognitiva de unir diversos aspectos do processo perceptivo é um aspecto central da mindfulness, conforme o entendimento de autores clássicos como Buddhaghosa.

Ainda assim, esse entendimento de mindfulness enquanto um foco retentivo não abarca todos os significados possíveis de mindfulness. Lembremos, por exemplo, da menção encontrada no Perguntas ao Rei Milinda, que é expressamente discriminativa, em um papel que parece ultrapassar a mera retenção cognitiva de um objeto. Para entender esta forma de mindfulness, precisamos considerar o papel de outro aspecto de sua prática, que é o desenvolvimento de compreensão clara (samprajnana, sampajanna). Este não é um fator mental separado, mas uma forma de discriminação (prajna, panna) intimamente ligada a mindfulness que permite à mente observar, compreender e avaliar o que precisa ser avaliado. É entendida como um elemento central da prática de mindfulness pois provê a compreensão derivada de uma atenção minuciosa à experiência. Pode, portanto, ser descrita como uma atenção ou mindfulness dotada de sabedoria, que deriva do cultivo desta faculdade. Esta mindfulness de sabedoria deve ser diferenciada, portanto, do que iremos chamar, a partir de agora, de mindfulness de fundação, a habilidade mais primária da mente de reter um objeto. A mindfulness de fundação é a base do aspecto mais cognitivo que é a mindfulness de sabedoria, que, por sua vez, é central à prática de mindfulness, conforme o entendimento da tradição budista, no qual o objetivo não é atingir estados elevados de consciência a partir da prática de concentração, mas desenvolver uma compreensão clara da impermanência dos estados de corpo e mente; do sofrimento e do não eu, assim como desfazer os nossos hábitos que resultam em sofrimento. É a mindfulness de fundação que gera esta compreensão, a partir da atenção minuciosa ao emergir e dissolver dos estados de corpo e mente. O verdadeiro objetivo da prática de mindfulness é o desenvolvimento desta compreensão – a observação crua dos estados mentais no surgimento, sem autoidentificação.

Ainda que várias tradições budistas concordem em enfatizar a centralidade da compreensão clara na prática de mindfulness, elas abordam a questão de maneiras diferentes. A tradição Theravada não parece colocar muita ênfase na natureza introspectiva da compreensão clara, que é descrita simplesmente enquanto um conhecimento do que se passa. Este conhecimento pode dizer respeito ao corpo, à mente, à respiração, assim como a outros objetos (Wallace e Bodhi, 2006, 10). A tradição sânscrita conforme, por exemplo, Shantideva, parece colocar mais foco na sua natureza introspectiva. Compreensão clara se torna então o conhecimento reflexivo sobre os estados de mente e corpo. Shantideva a descreve como “o exame repetido do corpo e da mente” (Batchelor, 1979, V.108, 59). Do mesmo modo, pensadores tibetanos como Tsongkhapa entendem a compreensão clara (shes bzhin) como especialmente voltada para a observação do funcionamento da mente durante a prática de meditação (Tsongkhapa, 2002, 57–71). A metáfora utilizada é a do vigilante, cujo olhar não é contínuo, mas disponível em qualquer ocasião para capturar os eventos assim que eles acontecem. O desenvolvimento de mindfulness nos torna muito mais hábeis neste tipo de observação. Ainda que de início demorássemos a detectar quando a mente estava fora do eixo na meditação, com o desenvolvimento da mindfulness nós encurtamos o tempo necessário para detectar a emergência de distrações e outros obstáculos na mente. Quando nos tornamos proficientes na prática, ganhamos a habilidade de detectar estes obstáculos quase no momento em que eles surgem. Quando entendida assim, compreensão clara se torna como que uma habilidade meta-atentiva de monitorar os estados mentais. É uma parte essencial do desenvolvimento da atenção, baseada não apenas na habilidade de focar em objeto (jogadores de videogame também conseguem fazer isso), mas na modulação da atenção, corrigindo o vaguear da mente e trazendo-a outra vez para o objeto. A tradição tibetana enquadra este tipo de mindfulness de sabedoria com o termo dran shes, a combinação da habilidade retentiva da mindfulness de fundação (dran pa) com a habilidade de fazer uso da compreensão clara (shes bzhin) para compreender o que está se passando na mente.

É esse tipo de mindfulness de sabedoria que eventualmente conduz o praticante a um discernimento mais profundo quanto à geração e dissolução dos estados mentais. É apenas considerando este estilo de mindfulness que seremos capazes de compreender todo o largo escopo da prática de mindfulness e perceber suas implicações cognitivas.

Conclusão: consequências de ignorar a natureza cognitiva de mindfulness

Esperamos que, a esta altura, tenhamos adquirido uma compreensão mais profunda do escopo e do alcance semântico do conceito escolástico budista mindfulness. Entendemos que a mindfulness em seu nível mais fundamental (mindfulness de fundação) é a habilidade da mente de reter um objeto e não se distrair dele. Essa habilidade de reter o objeto é o que permite a mente colocá-lo em foco para posteriormente rememorar-se dele. Também é o que conduz ao desenvolvimento da compreensão clara, um aspecto decisivo da prática de mindfulness que permite ao praticante discriminar entre os vários aspectos de sua experiência e discernir, por exemplo, entre os fatores mentais positivos e negativos, conforme está explícito no texto Perguntas ao Rei Milinda. Esse tipo de mindfulness de sabedoria difere da mindfulness de fundação uma vez que explicitamente inclui aspectos de compreensão e discriminação de um objeto. A mindfulness de fundação é limitada ao aspecto retentivo, que fornece uma base para compreensão clara. A mindfulness de sabedoria é mais ampla, incluindo de modo mais explícito qualidades discriminativas e, muitas vezes, uma dimensão introspectiva, conquanto a mindfulness de fundação seja limitada ao aspecto retentivo, a partir do qual vem a avaliação.

A prática de foco retentivo (mindfulness de fundação) não é o objetivo, mas um meio para um fim de natureza mais explicitamente cognitiva. O objetivo não é obter um estado mental mais calmo e focado, não obstante o quão benéfico esse estado venha a ser, mas estabilizar a mente de modo a ganhar uma compreensão mais profunda da natureza transitória e mutável dos estados corporais e mentais, e assim nos permitir liberar nossa mente de hábitos e tendências que nos vinculam ao sofrimento. Na terminologia budista escolástica clássica, isso significa dizer que mindfulness e concentração são desenvolvidas no intuito de obter insight ou discernimento (vipasyana, vipassana) sobre a impermanência, o sofrimento e o não eu relativo aos nossos agregados de corpo e mente, liberando, então, nossa mente das máculas. Esse entendimento do complexo corpo-mente surge em um estágio preliminar da compreensão clara, que é eminentemente conceitual. Mas, para ser genuinamente eficiente, o discernimento deve operar em um nível não conceitual. É aqui que mindfulness cumpre um papel essencial. Quando somos capazes de nos manter íntimos de nossa própria experiência e compreendê-la como impermanente, temos condições de mudar sua significância e observá-la de um outro ângulo. Obtemos, assim, um discernimento direto de sua natureza impermanente, discernimento esse que surge a partir da atenção profunda e da compreensão clara, mas vai além da apreensão conceitual. Desse modo, percebemos num nível experiencial a impermanência dos estados de corpo e mente, como também o sofrimento e o não eu, de modo que a qualidade substancial e hipnotizante de nossas experiências é diluída, tornando os eventos prazerosos meros lampejos sobre os quais não depositamos expectativas de satisfação permanente, e as experiências desprazerosas apenas obstáculos temporários, superando sua percepção enquanto fracassos angustiantes. Esse giro cognitivo é baseado no desenvolvimento de mindfulness, a habilidade retentiva a partir da qual temos condições de gerar significado em nossas experiências. Por sua vez, a mindfulness conduz à compreensão clara, que opera no nível conceitual e resulta em um discernimento não conceitual mais profundo, através do qual a transformação decisiva acontece. Portanto, a mudança no foco da atenção leva a mudança no conteúdo cognitivo, algo que é inteiramente óbvio, mas que parece ter se perdido na pressa de encaixar mindfulness na sua compreensão enquanto um foco não discriminativo no presente.

Torna-se claro agora que a compreensão moderna de mindfulness enquanto um foco não discriminativo no presente, ainda que não completamente equivocada, reflete apenas uma parcela do significado mais amplo da expressão. Apenas em alguns contextos, principalmente, mas não exclusivamente, o da prática do iniciante, a mindfulness pode ser identificada com uma atenção não elaborada ao que surge no momento presente. Tal espécie de atenção, voltada para o presente e não discriminativa, é apenas uma das modalidades de mindfulness, cujo escopo é um tanto mais amplo, incluindo habilidades explícitas de rememoração e habilidades cognitivas de discernimento de estados de corpo e mente. Também observamos que a identificação da mindfulness com este estado de consciência presente e não discriminativo ignora, ou pelo menos subestima, as implicações cognitivas da mindfulness, sua habilidade de compilar os vários aspectos da experiência de modo a gerar uma compreensão clara da natureza dos estados físicos e mentais. Através dessa ênfase exagerada no aspecto presente e no suposto problema da conceitualidade, os autores contemporâneos arriscam apresentar uma compreensão apenas parcial de mindfulness enquanto uma espécie de quietude unidimensional e meramente terapêutica. Creio ser importante não perder de vista que mindfulness não é apenas uma técnica de terapia, mas uma capacidade natural que ocupa um papel central em nosso processo cognitivo. Este é o aspecto que parece ser ignorado quando resumimos mindfulness a essa consciência fixa no momento presente e não discriminativa.

Frequentemente me vem a impressão de que o problema desse tipo de abordagem advém da falha em distinguir definições operacionais destinadas à aplicação prática e as descrições teóricas. Não há problema algum em instruir os praticantes para que permaneçam conscientes de seus estados físicos e mentais conforme eles surgem no momento presente, abstendo-se de julgamentos. Como explicamos antes, esta é uma maneira bastante útil de desenvolver mindfulness, uma vez que nos desengajamos dos padrões habituais de discursividade e reatividade que geralmente governam nossas ações. Mas a crença de que essas instruções práticas podem oferecer modelos teóricos do funcionamento de mindfulness me parece uma confusão um tanto grave. Mindfulness não deve ser conceituada enquanto uma mera atenção ao momento presente, pois ela envolve também uma série de habilidades cognitivas essenciais. Mindfulness é essencial à prática budista não só porque oferece um nível de autoaceitação necessário à saúde mental, mas porque resulta em transformações cognitivas profundas e liberadoras. Dessa perspectiva, torna-se importante distinguir a compreensão amadurecida provinda da mindfulness dos padrões discriminativos e reativos que dominam nossas mentes antes da transformação pela prática. Esses padrões reativos são prejudiciais não porque são discriminativos, mas justamente por serem reativos, sendo resultados de hábitos de fixação a experiências agradáveis e rejeição a experiências desagradáveis. Modo geral, a maior parte de nossos julgamentos está dominado por esse padrão desequilibrado. Nós adotamos ideias, atitudes e objetos, não a partir de uma ponderação madura, mas pela simples afinidade – pelo “gosto”. A prática da consciência não discriminativa, portanto, é útil enquanto uma disciplina que afrouxa essa reatividade e cria espaço que permite julgamentos amadurecidos. Portanto, é importante não perder de vista o papel do modo não discriminativo de mindfulness. Ele não é o fim em si, mas um meio hábil que permite o enfraquecimento das respostas automáticas que geralmente nos governam, criando espaço para atitudes adequadas.

Creio que as consequências dessa abordagem equivocada de mindfulness podem ser encontradas claramente na literatura recente de ciência cognitiva. Nesse âmbito, mindfulness é quase sempre introduzida enquanto uma terapia, como uma técnica de relaxamento, um método psicológico de autoaceitação. Quase nunca encontramos aspectos cognitivos em sua apresentação. A ausência desses aspectos é gritante em uma parcela considerável da literatura concernente à consciência das intenções, seu papel na execução de ações e a dimensão de sua presença no campo causal. Sinto-me perplexo ao me dar conta de que jamais vi a ideia de mindfulness ser mencionada nesse contexto, ou de tê-la visto aplicada em experimentos relevantes. Pois me parece que os praticantes de mindfulness seriam excelentes candidatos para experimentos e discussões dessa natureza, uma vez que eles possuem a habilidade de colocar atenção em seus estados físicos e mentais. Portanto, eles supostamente são capazes de distinguir mais claramente entre suas intenções aquelas que motivam suas ações ou não. Ao menos assim funciona na teoria, e verificar ou falsificar esse tipo de hipótese parece a coisa óbvia a fazer. No entanto, muito pouco foi produzido nesta direção. Creio que a indiferença de cientistas cognitivos diante da mindfulness é devida, em grande medida, à forma como o conceito foi teorizado na literatura psicológica, que enfatiza sua dimensão não discriminativa e subestima sua dimensão cognitiva. Penso que devemos corrigir esta situação, de modo que a importância real do conceito de mindfulness no contexto budista possa ser evidenciada, e participar do diálogo interdisciplinar que vem sendo travado no intuito de atingir uma compreensão melhor da mente e suas habilidades.

Tradução: Cortesia da equipe de traduções Contemplativas: Trad. Alexandre Chami Filho, Revisão: Alex Mourão e Lama Jigme Lhawang

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