O QUE SÃO EMOÇÕES? – António Damásio
O que são emoções?
Por António Damásio em “O Mistério da Consciência”
Sem exceção, homens e mulheres de todas as idades, culturas, níveis de instrução e econômicos têm emoções, atentam para as emoções dos outros, cultivam passatempos que manipulam suas emoções e em grande medida governam suas vidas buscando uma emoção, a felicidade, e procurando evitar emoções desagradáveis. A primeira vista, não existe nada caracteristicamente humano nas emoções, pois é claro que numerosas criaturas não humanas têm emoções em abundância; entretanto, existe algo acentuadamente característico no modo como as emoções vincularam-se a ideias, valores, princípios e juízos complexos que só os seres humanos podem ter, e é nessa vinculação que se baseia nossa sensata percepção de que a emoção humana é especial. A emoção humana não diz respeito apenas aos prazeressexuais ou ao medo que podemos ter de cobras. Diz respeito também ao horror que sentimos ao testemunhar o sofrimento e à satisfação de ver a justiça sendo feita, ao nosso encanto com o sorriso sensual de Jeanne Moreau ou com a densa beleza das palavras e das ideias nos poemas shakespearianos, ao fastio pelo mundo expresso na voz do barítono Dietrich Fischer-Dieskau cantando Ich habe genug, de Bach, e aos fraseados ao mesmo tempo mundanos e etéreos de Maria João Pires tocando qualquer peça de Mozart ou Schubert, e ainda à harmonia que Einstein buscava na estrutura de uma equação. De fato, a emoção humana, em seu refinamento, é desencadeada até mesmo por uma música e por filmes baratos, cujo poder nunca devemos subestimar.
O impacto humano de todas essas causas de emoções, refinadas e não tão refinadas, e de todas as nuances de emoções sutis ou não sutis que elas induzem depende dos sentimentos engendrados por essas emoções. E por intermédio destes, que são privados, voltados para dentro, que as emoções, que são públicas, voltadas para fora, iniciam seu impacto sobre a mente; mas o impacto integral e duradouro dos sentimentos requer a consciência, pois somente em conjunção com o advento de um sentido do self os sentimentos tornam-se conhecidos pelo indivíduo que os tem.
Alguns leitores podem ficar intrigados com a distinção entre “sentir” e “saber que temos um sentimento”. O estado de sentir não implica, necessariamente, que o organismo que sente tem plena consciência da emoção e do sentimento que estão acontecendo? Estou supondo que não, que um organismo pode representar em padrões neurais e mentais o estado que nós, criaturas conscientes, denominamos sentimento, sem jamais saber que existe sentimento. É difícil conceber essa separação, não apenas porque os significados tradicionais das palavras bloqueiam nossa visão, mas porque tendemos a ter consciência de nossos sentimentos. Contudo, não há evidência alguma de que temos ciência de todos os nossos sentimentos, mas há muitos indícios de que não. Por exemplo, em determinada situação, com frequência nos damos conta, de repente, de que estamos ansiosos ou inquietos, satisfeitos ou descontraídos, e é evidente que o estado de sentimento específico do qual tomamos conhecimento nesse instante não começou no momento em que foi conhecido, e sim algum tempo antes. Nem o estado de sentimento nem a emoção que conduziu a ele haviam se manifestado “na consciência”, e mesmo assim estavam ocorrendo como processos biológicos. Essas distinções podem parecer artificiais à primeira vista, embora meu intuito não seja complicar algo simples, mas dividir algo muito complexo em partes mais facilmente abordáveis. Com o propósito de investigar esses fenômenos, separo três estágios de processamento que fazem parte de um continuum: um estado de emoção, que pode ser desencadeado e executado inconscientemente; um estado de sentimento, que pode ser representado inconscientemente, e um estado de sentimento tornado consciente, isto é, que é conhecido pelo organismo que está tendo emoção e sentimento. Creio que essas distinções são úteis quando tentamos imaginar os fundamentos neurais dessa cadeia de eventos que ocorre nos seres humanos. Além disso, imagino que algumas criaturas não humanas que exibem emoções, mas que provavelmente não têm o tipo de consciência que possuímos, podem muito bem formar as representações que denominamos sentimentos sem saber que fazem isso. Alguém poderia sugerir que talvez devêssemos ter uma outra palavra para designar os “sentimentos que não são conscientes”, mas não temos nenhuma. A alternativa mais aproximada é explicar o que queremos dizer.
Em suma, a consciência tem de estar presente para que os sentimentos influenciem o indivíduo que os tem, além do aqui e agora imediato. A relevância desse fato de que as consequências supremas da emoção e do sentimento humano giram em torno da consciência — não foi adequadamente aquilatada (a estranha história das pesquisas sobre emoção e sentimento, mencionada adiante, possivelmente é a causa dessa negligência). A emoção provavelmente havia se estabelecido na evolução antes do aparecimento da consciência, e emerge em cada um de nós como resultado de indutores que com frequência não reconhecemos conscientemente; por outro lado, os sentimentos produzem seus efeitos supremos e duradouros no teatro da mente consciente.
O acentuado contraste entre a condição da emoção, que é induzida sem que saibamos e se volta para fora, e a condição do sentimento humano, que é essencialmente conhecido e se volta para dentro, forneceu-me uma perspectiva inestimável para uma reflexão sobre a biologia da consciência. E existem outras pontes ligando emoção e consciência. Neste livro, minha suposição é que, assim como a emoção, a consciência relaciona-se à sobrevivência do indivíduo e que, tal como a emoção, a consciência está alicerçada na representação do corpo. Também chamo a atenção para um fato neurológico curioso: quando a consciência está ausente, da consciência central para cima, em geral a emoção também está ausente, indicando que, embora emoção e consciência sejam fenômenos diferentes, seus alicerces podem estar ligados. Por todas essas razões, é importante discutir as características variadas da emoção antes de começarmos a tratar diretamente da consciência. Antes, porém, de esboçar os resultados dessa reflexão, farei um excurso sobre a estranha história da ciência da emoção, pois essa história pode explicar por que a consciência não foi abordada da perspectiva que estou adotando aqui.
EXCURSO HISTÓRICO
Dada a magnitude das questões às quais emoção e sentimento estão associados, seria de esperar que tanto a filosofia como as ciências da mente e do cérebro houvessem se devotado antes a seu estudo. Surpreendentemente, só agora isso está acontecendo. A filosofia, apesar de David Hume e da tradição que com ele se originou, não deu crédito à emoção e em grande medida a relegou aos reinos desprezíveis dos animais e da carne. Durante algum tempo, parecia que a ciência se sairia melhor, mas depois também ela perdeu sua chance.
No final do século XIX, Charles Darwin, William James e Sigmund Freud haviam publicado diversos escritos sobre diferentes aspectos da emoção, conferindo-lhe um lugar privilegiado no discurso científico. Contudo, por todo o século XX até bem recentemente, tanto a neurociência como a ciência cognitiva trataram a emoção com grande desdém. Darwin encetou um vasto estudo sobre a expressão das emoções em diferentes culturas e em diferentes espécies e, embora julgasse que as emoções humanas fossem vestígios de estágios anteriores da evolução, ele respeitou a importância do fenômeno. William James discerniu o problema com admirável clareza e compôs um relato que, apesar de incompleto, permanece fundamental. Freud, por sua vez, descortinou gradativamente o potencial patológico dos transtornos emocionais e apregoou sua importância com grande veemência.
As ideias de Darwin, James e Freud quanto ao aspecto do cérebro foram, por necessidade, um tanto vagas, mas um contemporâneo chamado Hughlings Jackson foi mais preciso. Ele deu o primeiro passo em direção a uma possível neuroanatomia da emoção, sugerindo que o hemisfério cerebral direito dos humanos provavelmente era determinante para a emoção, no mesmo grau em que o esquerdo era
determinante para a linguagem.
Teria sido bastante razoável esperar que, tendo início o novo século, as ciências do cérebro, em franco desenvolvimento, tivessem incluído em sua pauta a emoção e resolvido suas questões. Mas esse avanço não ocorreu. Pior ainda, o trabalho de Darwin sobre as emoções se perdeu, a hipótese de James foi injustamente criticada e sumariamente descartada e a influência de Freud desviou-se para outras áreas. Durante a maior parte do século XX, a emoção não teve espaço nos laboratórios. Dizia-se que era subjetiva demais. A emoção encontrava-se no polo oposto ao da razão, sendo esta, de longe, a mais refinada das capacidades humanas, e presumia-se que a razão era totalmente independente da emoção. Isso deturpava perversamente o modo como os românticos viam a humanidade. Situavam a emoção no corpo e a razão no cérebro. A ciência do século XX deixou o corpo de lado, devolveu a emoção ao cérebro mas relegou-o aos estratos neurais inferiores, associados a ancestrais que ninguém venerava. No final, não só a emoção mas até mesmo seu estudo provavelmente não eram racionais.
Existem paralelos curiosos à negligência da emoção pela ciência no século XX. Um desses paralelos é a ausência de uma perspectiva evolucionista no estudo do cérebro e da mente. Talvez seja exagero dizer que a neurociência e a ciência cognitiva procederam como se Darwin nunca tivesse existido, mas com certeza a situação era parecida com essa até a década passada. Aspectos do cérebro e da mente começaram a ser discutidos como se tivessem sido projetados recentemente, por necessidade, para produzir determinado efeito — mais ou menos como freios ABS instalados em todo carro novo que se preze —, sem nenhuma consideração pelos possíveis antecedentes dos mecanismos mentais e cerebrais. Nos últimos tempos, a situação vem mudando notavelmente.
Outro paralelo está no descaso pela noção de homeostasia. A homeostasia associa-se às reações fisiológicas coordenadas e em grande medida automáticas que são necessárias para manter estáveis os estados internos de um organismo vivo. Define-se homeostasia como a regulação automática da temperatura, da concentração de oxigênio ou do pH em nosso corpo. Muitos cientistas têm se empenhado em entender a neurofisiologia da homeostasia, em desvendar o nexo da neuroanatomia e da neuroquímica do sistema nervoso autônomo (a parte do sistema nervoso que participa mais diretamente da homeostasia) e em elucidar as inter-relações entre os sistemas endócrino, imune e nervoso, cujo trabalho conjunto produz a homeostasia. Mas o progresso científico obtido nessas áreas teve pouca influência nas concepções prevalecentes sobre como a mente ou o cérebro funcionam. Curiosamente, as emoções são parte integrante da regulação que denominamos homeostasia. Não faz sentido discuti-las sem compreender esse aspecto dos organismos vivos e vice-versa. Neste livro, suponho que a homeostasia seja essencial para a biologia da consciência.
Um terceiro paralelo é a ausência notável de uma noção de organismo na ciência cognitiva e na neurociência. A mente permaneceu ligada ao cérebro em uma relação um tanto equívoca, e o cérebro foi consistentemente separado do corpo em vez de ser visto como parte de um organismo vivo e complexo. A concepção de um organismo integrado —- a ideia de um conjunto composto de um corpo propriamente dito e de um sistema nervoso —– já aparecia na obra de pensadores como Ludwig von Bertalanffy, Kurt Goldstein e Paul Weiss, mas teve pouco impacto na formação das concepções tradicionais de mente e de cérebro.
É bem verdade que há exceções nesse vasto panorama. Por exemplo, as suposições teóricas de Gerald Edelman sobre a base neural da mente fundamentam-se no pensamento evolucionista e reconhecem a regulação homeostática; e minha hipótese do marcador somático baseia-se em concepções de evolução, regulação homeostática e organismo. Mas as suposições teóricas que vêm pautando a ciência cognitiva e a neurociência não têm feito muito uso das perspectivas alicerçadas no organismo e na evolução.
Em anos recentes, tanto a neurociência como a neurociência cognitiva finalmente referendaram a emoção. Uma nova geração de cientistas elegeu a emoção como tema de estudo. Além disso, a presumida oposição entre emoção e razão já não é aceita sem questionamento. Por exemplo, estudos em meu laboratório mostraram que a emoção integra os processos de raciocínio e decisão, seja isso bom ou mau. A princípio, isso pode parecer contrário à intuição, mas há indícios em favor dessa tese. As descobertas provêm do estudo de vários indivíduos que eram inteiramente racionais no modo como conduziam suas vidas até o momento em que, em consequência de uma lesão neurológica em locais específicos do cérebro, perderam determinada classe de emoções e, em um desdobramento paralelo importantíssimo, perderam a capacidade para tomar decisões racionais. Esses indivíduos ainda podem usar os instrumentos de sua racionalidade e ainda conseguem evocar o conhecimento sobre o mundo que os cerca. Sua capacidade para lidar com a lógica de um problema permanece intacta. Ainda assim, muitas de suas decisões pessoais e sociais são irracionais, o mais das vezes desvantajosas para eles próprios e para outras pessoas. Supus que neles o delicado mecanismo de raciocínio não é mais influenciado, inconscientemente e por vezes até mesmo conscientemente, por sinais provenientes do mecanismo neural subjacente à emoção.
Essa suposição é conhecida como hipótese do marcador somático, e os pacientes que me levaram a formulá-la apresentavam lesões em áreas específicas da região pré-frontal, principalmente nas áreas ventral e medial e nas regiões parietais direitas. Seja em razão de um derrame [acidente vascular cerebral], de um traumatismo craniano ou de um tumor que exigiu excisão cirúrgica, a lesão nessas regiões estava consistentemente associada ao aparecimento do padrão clínico que descrevi acima, ou seja, um distúrbio na capacidade de decidir vantajosamente em situações que envolvem risco e conflito e uma redução seletiva na capacidade de raciocinar emocionalmente nessas mesmas situações, enquanto o restante das capacidades emocionais desses pacientes permanecia preservado. Antes da ocorrência da lesão cerebral, os indivíduos assim afetados não apresentavam esse comprometimento. Seus parentes e amigos perceberam um “antes” e um “depois”, relacionados ao momento da lesão neurológica.
Essas descobertas indicam que uma redução seletiva da emoção é no mínimo tão prejudicial para a racionalidade quanto a emoção excessiva. Certamente não é verdade que a razão opere vantajosamente sem a influência da emoção. Pelo contrário, é provável que a emoção auxilie o raciocínio, em especial quando se trata de questões pessoais e sociais que envolvem risco e conflito. Sugeri que certos níveis de processamento de emoção são provavelmente indicativos do setor do espaço de tomada de decisão onde nosso raciocínio pode operar com máxima eficácia. Mas não sugeri que as emoções são um substituto para a razão ou que as emoções decidem por nós. É óbvio que comoções emocionais podem levar a decisões irracionais. As lesões neurológicas sugerem simplesmente que a ausência seletiva de emoção é um problema. Emoções bem direcionadas e bem situadas parecem constituir um sistema de apoio sem o qual o edifício da razão não pode operar a contento. Esses resultados e sua interpretação puseram em xeque a ideia que descarta a emoção como se fosse um luxo, um estorvo ou um mero vestígio evolutivo. Também possibilitaram que se visse emoção como a concretização da lógica da sobrevivência.
O CÉREBRO CONHECE MAIS DO QUE A
MENTE CONSCIENTE REVELA
A emoção e o sentimento da emoção são, respectivamente, o início e o fim de uma progressão, mas a natureza relativamente pública das emoções e a total privacidade dos sentimentos decorrentes indicam que os mecanismos ao longo do continuum são muito diferentes. Admitir uma distinção entre emoção e sentimento é útil para investigarmos minuciosamente esses mecanismos. Propus que o termo sentimento fosse reservado para a experiência mental privada de uma emoção, enquanto o termo emoção seria usado para designar o conjunto de reações, muitas delas publicamente observáveis. Na prática, isso significa que não se pode observar um sentimento em outra pessoa, embora se possa observar um sentimento em si mesmo quando, como ser consciente, seus próprios estados emocionais são percebidos. Analogamente, ninguém pode observar os sentimentos que um outro vivencia, mas alguns aspectos das emoções que originam esses sentimentos serão patentemente observáveis por outras pessoas. Além disso, em defesa de meu argumento, é possível mencionar que os mecanismos básicos subjacentes à emoção não requerem a consciência, ainda que acabem por usá-la: a cascata de processos que acarretam uma manifestação emocional pode ser ipiciada sem que se tenha consciência do indutor da emoção e muito menos das etapas intermediárias que conduziram a ela, Com efeito, mesmo a ocorrência de um sentimento no limitado espaço de tempo do aqui e agora é concebível sem que o organismo realmente saiba de sua ocorrência. É verdade que, nesta etapa da evolução e em nossa vida adulta, as emoções ocorrem em um contexto de consciência.
Podemos sentir consistentemente nossas emoções, e sabemos que as sentimos. A trama de nossa mente e de nosso comportamento é tecida ao redor de ciclos sucessivos de emoções seguidas por sentimentos que se tornam conhecidos e geram novas emoções, numa polifonia contínua que sublinha e pontua pensamentos específicos em nossa mente e ações em nosso comportamento. Mas, embora emoção e sentimento sejam agora parte de um continuum funcional, convém distinguir as etapas ao longo desse continuum, se pretendemos lograr algum êxito ao estudar seus fundamentos biológicos. Ademais, como já mencionado, é possível que os sentimentos se situem exatamente no limiar que separa o ser do conhecer e, portanto, é possível que tenham uma ligação privilegiada com a consciência.
Por que tenho tanta certeza de que o mecanismo biológico subjacente à emoção independe da consciência? Afinal, em nossa experiência rotineira, frequentemente parecemos conhecer as circunstâncias que levam a uma emoção. Mas conhecer frequentemente não é o mesmo que conhecer sempre. Há muitos dados que indicam a natureza encoberta da indução de emoção, e ilustrarei esse argumento com alguns resultados experimentais de minhas pesquisas.
David, que apresenta um dos mais graves distúrbios de aprendizado e memória já registrados, não é capaz de aprender nenhum fato novo. Por exemplo, é incapaz de gravar na memória uma aparência física, um som, um lugar ou uma palavra que sejam novos. Consequentemente, não consegue aprender a reconhecer nenhuma pessoa nova, pelo rosto, pela voz ou pelo nome, nem consegue se lembrar de coisa alguma relacionada ao lugar onde encontrou determinada pessoa ou aos eventos ocorridos entre essa pessoa e ele. O problema de David é causado por uma lesão extensa em ambos os lobos temporais, incluindo uma lesão na região denominada hipocampo (cuja integridade é necessária para criar a lembrança de fatos novos) e na região conhecida como amígdala (um agrupamento subcortical de núcleos relacionados à emoção, que mencionarei nas páginas seguintes).
Muitos anos atrás, disseram-me que David parecia manifestar, em sua vida cotidiana, preferências e aversões consistentes por determinadas pessoas. Por exemplo, no local onde ele viveu a maior parte dos últimos vinte anos, havia certas pessoas a quem ele preferia recorrer quando queria um cigarro ou uma xícara de café, e outras a quem ele nunca recorria. A consistência desses comportamentos era muito intrigante, considerando que David não era capaz de reconhecer nenhum daqueles indivíduos, que ele não fazia a mínima ideia de já ter visto alguma vez qualquer uma daquelas pessoas e que ele não era capaz de lembrar o nome de nenhuma delas ou de indicar qualquer uma se lhe mencionassem um nome. Essa história instigante poderia ser mais do que um caso curioso? Decidi investigar, por meio de testes empíricos. Para isso, em colaboração com meu colega Daniel Tranel, concebi um experimento que se tornou conhecido em nosso laboratório como experimento do bonzinho/malvado.
Durante uma semana, conseguimos fazer com que David, em circunstâncias totalmente controladas, participasse de três tipos distintos de interação humana. Um tipo de interação ocorreu com alguém extremamente agradável e simpático que sempre recompensou David, quer ele pedisse alguma coisa, quer não pedisse nada (o “bonzinho”). Outra interação foi com alguém emocionalmente neutro e que incumbiu David de tarefas que não foram agradáveis nem desagradáveis (o neutro”). Um terceiro tipo de interação envolveu um indivíduo cujos modos foram bruscos, que disse não a todos os pedidos de David e que lhe aplicou teste psicológico muito maçante, que entediaria até um santo (o “malvado”): o teste de não associação tardia ao modelo, inventado para estudar a memória em macacos e provavelmente muito agradável para quem tem a mente de um macaco.
A encenação dessas diferentes situações foi organizada para ocorrer em cinco dias consecutivos, em ordem aleatória, mas sempre durante um intervalo de tempo determinado, para que a exposição total ao bonzinho, ao malvado e ao neutro fosse adequadamente medida e comparada. A encenação dessa dança complexa exigiu várias salas e diversos auxiliares, os quais, aliás, não eram os mesmos que fizeram o papel do bonzinho, do malvado e do neutro.
Depois de um tempo, necessário para que todos os encontros fossem bem digeridos, pedimos a David que participasse de duas tarefas. Em uma delas, pedimos que olhasse para conjuntos de quatro fotografias que incluíam o rosto de um dos três indivíduos do experimento. Perguntamos então: “Qual dessas pessoas você procuraria se precisasse de ajuda?”. E ainda: “Quem você acha que é seu amigo neste grupo?”.
O comportamento de David foi surpreendente. Nos casos em que o indivíduo que havia sido afável com ele estava entre as quatro fotografias, David escolheu o bonzinho em mais de 80% das vezes, indicando claramente que a escolha não foi aleatória — o acaso, sozinho, teria feito com que David escolhesse cada um dos quatro indivíduos 25% das vezes. O indivíduo neutro foi escolhido com uma probabilidade não maior que a do acaso. E o malvado quase nunca foi escolhido, novamente uma violação do comportamento aleatório.
Na segunda tarefa, pedimos a David que olhasse para o rosto dos três indivíduos e nos dissesse o que sabia sobre eles. Como sempre acontecia com David, nada lhe veio à mente. Não conseguia se lembrar de já os ter encontrado e não se recordava de nenhuma ocasião em que tivesse interagido com eles. Nem é preciso dizer que ele não sabia o nome dos indivíduos, não sabia apontar para um deles se lhe dissessem um nome e não fazia ideia do que estávamos falando quando o questionamos sobre os acontecimentos da semana anterior. Mas, quando lhe perguntamos quem, entre os três, era seu amigo, ele consistentemente escolheu o bonzinho.
Os resultados do teste foram compensadores. Por certo não havia nada na mente consciente de David que lhe fornecesse uma razão clara para escolher corretamente o bonzinho e rejeitar o malvado. Ele não sabia por que escolheu um ou rejeitou o outro. Ele apenas agiu assim. A preferência inconsciente que ele manifestou, porém, provavelmente se relacionava às emoções a que ele foi induzido durante o experimento, bem como à nova indução, inconsciente, de alguma parte dessas emoções no momento em que ele participava dos testes. David não adquirira conhecimentos novos, do tipo que pode ser mobilizado na mente na forma de uma imagem. Mas algo permanecera em seu cérebro, e esse algo pôde produzir resultados de uma forma não imagética: na forma de ações e de comportamento. O cérebro de David podia gerar ações comensuráveis com valor emocional semelhante ao dos encontros originais, valor cuja causa era a recompensa ou a ausência de recompensa. Para tornar mais clara essa ideia, citarei uma observação que registrei em uma das sessões de exposição do experimento do bonzinho/malvado.
David estava sendo levado para um encontro com o malvado; quando entrou no corredor e viu o indivíduo à sua espera, a alguns metros de distância, ele se retraiu, parou por um instante, e só então permitiu calmamente que o levassem para a sala do teste. Perguntei-lhe então se havia algum problema, se eu poderia fazer alguma coisa por ele. Porém, correspondendo à minha expectativa, ele respondeu que não, que ele estava bem — afinal, nada veio à sua mente, exceto, talvez, o senso isolado de uma emoção sem nenhuma causa que a fundamentasse. Não tenho dúvidas de que a visão do malvado induziu uma reação emocional breve e um sentimento fugaz no aqui e agora. Contudo, na ausência de um conjunto de imagens apropriado que explicasse a causa da reação, o efeito permaneceu isolado, desconexo e, portanto, imotivado.
Também não duvido que, se tivéssemos prosseguido nessa tarefa semanas a fio, em vez de apenas por uma semana, David teria usado essas reações negativas e positivas para produzir o comportamento que melhor se coadunasse com seu organismo, ou seja, consistentemente preferir o bonzinho e evitar o malvado.
Porém, não estou afirmando que ele próprio teria feito essa escolha deliberadamente, mas que seu organismo, com a estrutura e as inclinações disponíveis, teria adotado exatamente esse comportamento. David teria desenvolvido um tropismo positivo para o bonzinho e um tropismo negativo para o malvado, de modo bem semelhante a como desenvolvia suas preferências no contexto da vida real.
Essa situação que descrevi permite-nos outras observações. Primeiro, a consciência central de David está intacta, e voltaremos a examinar esse assunto no próximo capítulo. Segundo, embora no contexto do experimento do bonzinho/malvado as emoções de David tenham sido induzidas inconscientemente, em outros contextos ele sabe o porquê de suas emoções. Quando não precisa depender de suas lembranças de
coisas novas, David percebe que está feliz porque está comendo sua comida predileta ou contemplando uma cena agradável.
Terceiro, dada a vasta destruição de várias regiões corticais e subcorticais de seu cérebro relacionadas à emoção — como, por exemplo, os córtices pré-frontais ventromediais, o prosencéfalo basal, as amígdalas —, torna-se evidente que essas regiões não são indispensáveis para a emoção ou para a consciência. Também podemos registrar, para referência futura, que certas estruturas do cérebro de David permanecem
intactas: todo o tronco cerebral, o hipotálamo, o tálamo, a maior parte dos córtices do cíngulo e praticamente todas as estruturas sensoriais e motoras. Um comentário final: o “malvado” de nosso experimento era uma jovem neuropsicóloga, simpática e bela. Planejamos o experimento desse modo, fazendo-a representar um papel que era o oposto do modo como ela se apresentava, pois queríamos determinar até que ponto a predileção manifesta de David pela companhia de moças bonitas poderia contrabalançar a antipatia do comportamento planejado para ela e o fato de que era ela quem dava a David a tarefa maçante (David realmente é um tanto mulherengo; surpreendi-o certa vez acariciando o braço de Patricia Churchland e dizendo: “Sua pele é tão macia…”). Bem, como se pode perceber, nosso inofensivo e perverso plano compensou. Nenhuma beleza natural do mundo teria contrabalançado a emoção negativa induzida pelos maus modos da “malvada” e pela chatice da tarefa que ela impingiu a David.
Não precisamos ter consciência do indutor de uma emoção, com frequência não temos e somos incapazes de controlar intencionalmente as emoções. Você pode perceber-se num estado de tristeza ou de felicidade e ainda assim não ter nenhuma ideia dos motivos responsáveis por esse estado específico. Uma investigação cuidadosa pode revelar causas possíveis, e uma ou outra causa pode parecer mais provável, porém frequentemente você não consegue ter certeza. A causa real pode ter sido a imagem de um acontecimento, uma imagem que tinha o potencial para ser consciente mas não foi, porque você não prestou atenção a ela enquanto atentava a alguma outra. Ou essa causa pode não ter sido nenhuma imagem, mas uma alteração transitória na composição química de seu meio interno, acarretada por fatores tão diversos quanto sua saúde, sua dieta, o clima, seu ciclo hormonal, quanto você se exercitou ou deixou de exercitar-se nesse dia ou mesmo sua preocupação com determinado problema. A alteração teria sido suficientemente substancial para engendrar algumas reações e alterar seu estado físico, mas não teria sido representável por imagem, no sentido em que uma pessoa ou uma relação podem ser; isto é, essa alteração não teria produzido um padrão sensorial do qual você se daria conta na mente. Em outras palavras, não necessariamente prestamos atenção às representações que induzem emoções e que depois conduzem a sentimentos, independentemente de elas significarem ou não algo externo ao organismo ou algo lembrado internamente. Representações do exterior ou do interior podem ocorrer independentemente de um exame consciente e ainda assim induzir reações emocionais. Emoções podem ser induzidas de maneira inconsciente e, assim, afigurar-se ao self consciente como aparentemente imotivadas.
Temos certo controle sobre uma imagem que gostaríamos que funcionasse como indutora, se ela deve ou não permanecer como alvo de nossos pensamentos. (Quem recebeu uma educação católica, ou quem frequentou uma escola para atores como o Actors Studio, sabe exatamente do que estou falando.) Podemos não ter êxito na tarefa, mas o trabalho de remover ou manter o indutor ocorre sem dúvida
alguma na consciência. Também podemos controlar, em parte, a expressão de algumas emoções — suprimir nossa raiva, disfarçar nossa tristeza —, mas a maioria não é bem-sucedida nessa tarefa, e por isso gasta um bom dinheiro só para ver atores talentosos controlando a expressão de suas emoções (ou perde fortunas num jogo de pôquer). Porém, quando uma representação sensorial específica é formada, seja ou não parte de nosso fluxo consciente de pensamentos, não temos muita influência sobre o mecanismo indutor da emoção. Sendo correto o contexto psicológico e fisiológico, uma emoção se seguirá. O acionamento inconsciente de emoções também explica por que não é fácil imitá-las voluntariamente. Como mostrei em O erro de Descartes, o sorriso nascido espontaneamente de um prazer genuíno ou o soluço causado espontaneamente pela tristeza são produtos de estruturas cerebrais localizadas em uma região profunda do tronco cerebral, sob controle da região do cíngulo. Não temos como exercer um controle voluntário direto sobre os processos neurais nessas regiões. A imitação voluntária feita por quem não é um ator exímio é facilmente detectada como fingimento — alguma coisa sempre falha, quer na configuração dos músculos faciais, quer no tom de voz. O resultado disso é que, para a maioria de nós que não somos atores, as emoções são um indicador bastante razoável do quanto o meio conduz ao nosso bemestar ou, no mínimo, do quanto ele assim parece à nossa mente.
Somos tão incapazes de impedir uma emoção quanto de impedir um espirro. Podemos tentar impedir a expressão de uma emoção, e podemos ser bem-sucedidos em parte, porém não inteiramente. Alguns, sob a influência cultural apropriada, acabam por tornar-se muito bons nisso, mas, em essência, o que conseguimos adquirir é uma capacidade para disfarçar algumas das manifestações externas de emoção,
sem jamais podermos bloquear as mudanças automáticas que ocorrem nas vísceras e no meio interno. Pense na última vez em que você ficou comovido com alguma coisa em público e tentou dissimular. Você pode ter se safado se estava no cinema, no escuro, a sós com Gloria Swanson, mas não se estava fazendo o elogio fúnebre de algum amigo morto: sua voz o teria traído. Já me disseram que a ideia de os sentimentos ocorrerem após a emoção não pode estar correta, já que é possível suprimir emoções e ainda assim ter sentimentos. Mas isso não é verdade, obviamente, exceto pela supressão parcial de expressões faciais. Podemos disciplinar nossas emoções, mas não suprimi-las totalmente; e os sentimentos que temos dentro de nós são testemunha desse malogro.
EXCURSO: CONTROLAR O INCONTROLÁVEL
O controle respiratório, sobre o qual precisamos exercer alguma ação voluntária pois a respiração autônoma e a vocalização voluntária, quando falamos e cantamos, usam o mesmo instrumento –, é em parte uma exceção ao controle extremamente limitado que temos sobre o meio interno e as vísceras. Pode-se aprender a nadar debaixo d’água, prendendo a respiração por períodos cada vez mais longos, mas há limites que nem um campeão olímpico consegue ultrapassar se quiser permanecer vivo. Os cantores de ópera defrontam-se com uma barreira semelhante: que tenor não adoraria sustentar o dó de peito mais um instantezinho, só para irritar a soprano? Mas nenhum treinamento de laringe e de diafragma permitirá que um tenor ou uma soprano transponham a barreira. O controle indireto da pressão sanguínea e do ritmo cardíaco por meio de procedimentos como o biofeedback também são exceções parciais. Porém, via de regra, o controle voluntário sobre as funções autônomas é bastante limitado.
Entretanto, posso mencionar uma exceção notável. Anos atrás, a brilhante pianista Maria João Pires contou-nos o seguinte: quando está tocando, ela é capaz de, sob total controle de sua vontade, reduzir ou liberar o fluxo da emoção em seu corpo. Hanna, minha esposa, e eu pensamos que essa era apenas uma ideia maravilhosamente romântica, mas Maria João garantiu que era capaz disso, e nós não acreditamos. Por fim, a hora da verdade chegou, em um palco montado em nosso laboratório. Maria João foi conectada a um complexo equipamento psicofisiológico enquanto ouvia breves composições musicais escolhidas por nós, e submetida a duas condições: com a emoção liberada ou com a emoção voluntariamente inibida. Seus Noturnos de Chopin tinham sido lançados havia pouco, e como estímulo usamos algumas peças interpretadas por ela e outras tocadas por Daniel Barenboim. Com a “emoção liberada”, a condutância de sua pele apresentou numerosos picos e depressões, associados de maneira fascinante a várias passagens da música. A seguir, com a “emoção reduzida”, o inacreditável realmente aconteceu. Ela conseguiu uniformizar quase por completo o gráfico de condutância de sua pele, de acordo com sua vontade, e ainda alterar seu ritmo cardíaco. Seu comportamento também mudou. A composição das emoções de fundo foi reajustada, e alguns comportamentos emotivos específicos foram eliminados; por exemplo, a movimentação da musculatura da cabeça e do rosto foi menor. Quando nosso colega Antoine Bechara, não acreditando, repetiu todo o experimento, imaginando que aquilo poderia ter como causa o hábito, ela mais uma vez conseguiu. Portanto, existem algumas exceções, talvez mais frequentes entre aqueles que se distinguem extraordinariamente em seu trabalho de criar magia por meio da emoção.
O QUE SÃO EMOÇÕES?
A menção da palavra emoção em geral traz à mente uma das assim chamadas emoções primárias ou universais: alegria, tristeza, medo, raiva, surpresa ou repugnância. As emoções primárias facilitam a discussão do problema, mas é importante notar que existem muitos outros comportamentos aos quais se apôs o rótuIo “emoção”. Eles incluem as chamadas emoções secundárias ou sociais, como embaraço, ciúme, culpa ou orgulho, e também o que denomino emoções de fundo, como bem-estar ou mal-estar, calma ou tensão. O rótulo “emoção” também foi aplicado a impulsos e motivações e a estados de dor ou prazer.
Um núcleo biológico comum fundamenta todos esses fenômenos, e pode ser brevemente descrito da seguinte maneira:
1. Emoções são conjuntos complexos de reações químicas e neurais, formando um padrão; todas as emoções têm algum tipo de papel regulador a desempenhar, levando, de um modo ou de outro, à criação de circunstâncias vantajosas para o organismo em que o fenômeno se manifesta; as emoções estão ligadas à vida de um organismo, ao seu corpo, para ser exato, e seu papel é auxiliar o organismo a conservar a vida.
2. Mesmo sendo verdade que o aprendizado e a cultura alteram a expressão das emoções e lhes conferem novos significados, as emoções são processos determinados biologicamente, e dependem de mecanismos cerebrais estabelecidos de modo inato, assentados em uma longa história evolutiva.
3. Os mecanismos produtores de emoções ocupam um grupo razoavelmente restrito de regiões subcorticais, começando no nível do tronco cerebral e chegando até regiões localizadas em uma região superior do cérebro; os mecanismos são parte de um conjunto de estruturas que regulam e representam estados corporais, como será mostrado no capítulo 5.
4. Todos os mecanismos podem ser acionados automaticamente, sem uma reflexão consciente; a variação individual, considerável, e o fato de a cultura ter um papel na configuração de alguns indutores não impedem que as emoções tenham uma natureza fundamentalmente estereotipada e automática e uma finalidade reguladora.
5. Todas as emoções usam o corpo como teatro (meio interno, sistemas visceral, vestibular e musculoesquelético), mas as emoções também afetam o modo de operação de inúmeros circuitos cerebrais: a variedade de reações emocionais é responsável por mudanças profundas na paisagem do corpo e do cérebro. O conjunto dessas mudanças constitui o substrato para os padrões neurais que, em última instância, se tornam sentimentos de emoção.
É necessário ainda mencionar as emoções de fundo, pois essa denominação e esse conceito não são levados em conta pelas discussões tradicionais sobre a emoção. Quando percebemos que uma pessoa está “tensa” ou “irritadiça”, “desanimada” ou “entusiasmada”, “abatida” ou “animada”, sem que nenhuma palavra tenha sido dita para traduzir qualquer um desses possíveis estados, o que detectamos são emoções de fundo. Detectamos emoções de fundo por meio de detalhes sutis, como a postura do corpo, a velocidade e o contorno dos movimentos, mudanças mínimas na quantidade e na velocidade dos movimentos oculares e no grau de contração dos músculos faciais.
Os indutores de emoções de fundo são geralmente internos. Os próprios processos de regulação da vida podem causar emoções de fundo, mas estas também podem ter como causa processos contínuos de conflito mental, explícitos ou velados, na medida em que esses processos acarretam a satisfação ou a inibição constantes de impulsos e motivações. Por exemplo, emoções de fundo podem ser causadas por um esforço físico prolongado – desde ficar eufórico depois do jogging até ficar deprimido depois de um esforço físico monótono e sem ritmo – por uma longa reflexão sobre uma decisão considerada difícil — uma das razões do abatimento do príncipe Hamlet – ou pelo gozo antecipado diante da perspectiva de algo deliciosamente prazeroso que você está esperando. Em suma, certas condições de estado interno engendradas por processos físicos contínuos ou por interações do organismo com o meio, ou ainda por ambas as coisas, causam reações que constituem emoções de fundo. Essas emoções permitem que tenhamos, entre outros, os sentimentos de fundo de tensão ou relaxamento, fadiga ou energia, bem-estar ou mal-estar, ansiedade ou apreensão.
Nas emoções de fundo, as reações constitutivas estão mais próximas do núcleo íntimo da vida, e seu alvo é mais interno do que externo. Nelas, o principal papel é desempenhado pelos perfis do meio interno e das vísceras. Mas, embora não façam uso do repertório diferenciado de expressões faciais explícitas que facilmente definem as emoções primárias e sociais, as emoções de fundo também se expressam em complexas mudanças musculoesqueléticas, como, por exemplo, em posturas sutis do corpo e na configuração global dos movimentos corporais.ii A experiência ensinou-me que as emoções de fundo sobrevivem bravamente às doenças neurológicas. Por exemplo, elas se mantêm em pacientes com lesão frontal ventromedial, e o mesmo ocorre em pacientes com lesão na amígdala. Curiosamente, como será explicado no próximo capítulo, em geral as emoções de fundo são comprometidas quando o nível básico de consciência, a consciência central, também é comprometido.
A FUNÇÃO BIOLÓGICA DAS EMOÇÕES
Embora a composição e a dinâmica precisas das reações emocionais sejam moldadas em cada indivíduo pelo meio e por um desenvolvimento único, há indícios de que a maioria das reações emocionais, se não todas, resulta de uma longa história de minuciosos ajustes evolutivos. As emoções são parte dos mecanismos biorreguladores com os quais nascemos equipados, visando à sobrevivência. Foi por isso que Darwin conseguiu catalogar as expressões emocionais de tantas espécies e encontrar consistência nessas expressões, e é por isso que, em diferentes partes do mundo e em diversas culturas, as emoções são tão facilmente reconhecidas. É bem verdade que, nas diferentes culturas e entre os indivíduos, existem variações nas expressões, assim como também varia a configuração exata dos estímulos que podem induzir uma emoção. Mas o que causa admiração quando se observa o mundo lá do alto, é a semelhança, e não a diferença. Aliás, é essa semelhança que possibilita as relações entre diferentes culturas e permite que a arte, a literatura, a música e o cinema cruzem fronteiras. Essa concepção baseia-se em larga medida na obra de Paul Ekman.
A função biológica das emoções é dupla. A primeira é a produção de uma reação específica à situação indutora. Em um animal, por exemplo, a reação pode ser correr, imobilizar-se, lutar ferozmente contra o inimigo ou iniciar um comportamento prazeroso. Nos humanos, as reações são essencialmente as mesmas, influenciadas —— espera-se — pelo raciocínio e pela sabedoria. A segunda função biológica da emoção é a regulação do estado interno do organismo de modo que ele possa estar preparado para a reação específica. Por exemplo, fornecer um fluxo sanguíneo mais intenso às artérias das pernas para que os músculos recebam oxigênio e glicose adicionais, no caso de uma reação de fuga, ou alterar os ritmos cardíacos e respiratórios, no caso da imobilização. Nesses casos, e em outras situações, o plano é primoroso, e a execução, muito confiável. Em suma, para certos tipos de estímulo claramente perigosos ou valiosos, no meio interno ou no externo, a evolução reservou uma reação condizente, na forma de emoção. E por esse motivo que, apesar das infinitas variações encontradas nas diferentes culturas, entre os indivíduos e no decorrer de uma vida, podemos predizer com algum êxito que certos estímulos produzirão certas emoções. (E por isso que você pode dizer a um colega: “Conte para ela. Ela ficará muito feliz ao ouvir isso”.)
Em outras palavras, o “propósito” biológico das emoções é claro, e as emoções não são um luxo dispensável. As emoções são adaptações singulares que integram o mecanismo com o qual os organismos regulam sua sobrevivência. Mesmo sendo, na escala evolutiva, bastante antigas, as emoções são um componente de nível razoavelmente superior dos mecanismos de regulação da vida. Esse componente situa-se entre o kit de sobrevivência básico (por exemplo, regulação do metabolismo, reflexos simples, motivações, biologia da dor e do prazer) e os mecanismos do raciocínio superior, ainda fazendo parte, contudo, da hierarquia dos mecanismos de regulação da vida. Para espécies menos complexas do que a humana, e também para os humanos distraídos, as emoções realmente produzem comportamentos bem aceitáveis do ponto de vista da sobrevivência.
Em seu nível mais básico, as emoções são parte da regulação homeostática, sendo mobilizadas para conservar a integridade, cuja perda é um prenúncio da morte ou a própria morte, e para servir de ajuda a uma fonte de energia, abrigo ou sexo. Além disso, como consequência de poderosos mecanismos de aprendizado, como o condicionamento, emoções de todas as gradações acabam por ajudar a ligar a regulação homeostática e os “valores” de sobrevivência a muitos eventos e objetos de nossa experiência autobiográfica. As emoções são inseparáveis de nossa ideia de recompensa ou punição, prazer ou dor, aproximação ou afastamento, vantagem ou desvantagem pessoal. Inevitavelmente, as emoções são inseparáveis das ideias de bem e de mal.
Qual a relevância da discussão do papel biológico das emoções em um texto dedicado à questão da consciência? É preciso esclarecer esse ponto. As emoções fornecem aos organismos, automaticamente, comportamentos voltados para a sobrevivência. Em organismos equipados para sentir emoções, ou seja, para ter sentimentos, as emoções também têm um impacto sobre a mente, no momento em que ocorrem, no aqui e agora. Mas em organismos equipados com consciência, ou seja, capazes de saber que têm sentimentos, existe ainda outro nível de regulação. A consciência permite que os sentimentos sejam conhecidos e, assim, promove internamente o impacto da emoção, permite que ela, por intermédio do sentimento, permeie o processo de pensamento. Por fim, a consciência torna possível que qualquer objeto seja conhecido – o “objeto” emoção e qualquer outro objeto – e, com isso, aumenta a capacidade do organismo para reagir de maneira adaptativa, atento às necessidades do organismo em questão. A emoção está vinculada à sobrevivência de um organismo, e o mesmo se aplica à consciência.
Por António Damásio
“O Mistério da Consciência”